segunda-feira, 28 de abril de 2025

A conquista da felicidade. Bertrand Russel. Nobel de literatura - 1950.

Confesso que não sou muito fã de leituras que envolvam este complicado tema da felicidade. Eu explico o porquê. É que este tema quase sempre é abordado por moralistas ou religiosos. E sobre isso eu tenho uma frase lapidar. É do Eça de Queirós, em O crime do padre Amaro. Nele, o padre Amaro reage ao cônego Dias, que o chamara de traste: "Traste por quê? Diga-me lá! Traste por quê. Temos ambos culpa no cartório, eis aí está. E olhe que eu não fui perguntar, nem peitar a Totó... Foi muito naturalmente ao entrar em casa. E se me vem agora com coisas de moral, isso faz-me rir. A moral é para a escola e para o sermão. Cá na vida eu faço isto, o senhor faz aquilo, os outros fazem o que podem. O padre-mestre que já tem idade agarra-se à velha, eu que sou jovem arranjo-me com a pequena. É triste mas que fazer? É a natureza que manda. Somos homens. E como sacerdotes, para honra da classe, o que temos é que fazer costas!". Está aí. Moralistas e religiosos.

Mas o livro que eu tomei em mãos não é o de um moralista, nem o de um religioso. É de um senhor escritor e de um senhor filósofo: Bertrand Russel. Tenho por ele o maior respeito, respeito que lhe devoto desde a leitura de Por que não sou cristão. O livro em questão é - A conquista da felicidade. A sua primeira publicação data de 1930. Em 1950 o autor foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura. Bertrand Russel (1872-1970) teve uma longa vida. Certamente que uma vida feliz o ajudou a ter toda essa longevidade.

A conquista da felicidade. Bertrand Russel. Ediouro. Tradução: Luiz Guerra. 

Se não aprecio tanto a abordagem do tema, também não nego a sua fundamental importância. Afinal de contas, a busca da felicidade é o objetivo último da vida. Assim, sem sombra de dúvida, ele vale muito de nossa atenção. Reflexões sobre o tema também propiciam ajudas no seu alcance.  O livro tem um belíssimo prefácio, no qual o autor apresenta as razões do livro. Transcrevo-o:

"Este livro não é endereçado aos eruditos nem àqueles que julgam que um problema prático não passa de um tema de conversa. O leitor não encontrará nestas páginas nem filosofias e nem erudição profundas. Pensei em reunir alguns comentários inspirados, segundo acredito, pelo senso comum. O que apenas posso dizer em favor dos conselhos que ofereço ao leitor é que se acham confirmados, por minha própria experiência e observação, e que fizeram aumentar minha felicidade sempre que me conduzi de acordo com eles. Sendo assim, ouso esperar que, entre a multidão de homens e mulheres que sofrem, alguns encontrem aqui o diagnóstico de sua própria situação e sugestões eficientes para resolverem tais questões. Ao escrever este livro, parto da convicção de que muitas pessoas infelizes podem chegar a conquistar a felicidade, se fizerem um esforço bem orientado". Na sequência cita um poema:

"Creio que poderia transformar-me e viver com os animais. Eles são tão calmos e donos de si. // Detenho-me para contemplá-los sem parar. // Não se atarantam nem se queixam da própria sorte, // Não passam a noite em claro, remoendo suas culpas, // Nem me aborrecem falando de suas obrigações para com Deus. // Nenhum deles se mostra insatisfeito, nenhum deles se acha dominado pela mania de possuir coisas. // Nenhum deles fica de joelhos diante de outro, nem diante da recordação de outros da mesma espécie que viveram há milhares de anos. // Nenhum deles é respeitável ou desgraçado em todo o amplo mundo". O poema é de Walt Whitman. Seria este poema uma alegoria ou fonte da qual emanam as causas da infelicidade?

Vamos sublinhar - nem erudição, nem filosofias. Mas vivência. Conselhos confirmados por minha experiência e observação. Ofereço aquilo que deu certo para mim, além de dois princípios fundamentais: esforço e boa orientação. Bem, vamos agora a estruturação básica do livro. Ele está dividido em duas partes: A primeira aponta para as causas da infelicidade e a segunda, o seu oposto, ou seja, as causas que conduzem à felicidade. Um estruturação bem simples.

A primeira parte, qual seja, as causas da infelicidade, tem nove capítulos. É o que devemos evitar. Vou nominá-los: 1. O que torna as pessoas infelizes; 2. Infelicidade byroniana; 3. Competição; 4. Tédio e excitação; 5. Fadiga; 6. Inveja; 7. Sentimento de pecado (remorso, culpa); 8. Mania de perseguição; 9 Medo da opinião pública. Esses sentimentos ou situações estão muito presentes, ou profundamente impregnados na cultura, na civilização ocidental, praticamente como valores dominantes. São, portanto, os fundamentos de uma cultura que contém em si, as causas da infelicidade. O avesso das virtudes. Simples assim. Quanta literatura não existe sobre o tema!...

A segunda parte, qual seja, as causas da felicidade, tem oito capítulos. É o que devemos buscar. Eis a relação: 10. A felicidade é ainda possível?; 11. Entusiasmo; 12. Afeição; 13. Família; 14. Trabalho; 15. Interesses impessoais; 16. Esforço e resignação; 17. O homem feliz. Recomendações daquilo que deve ser buscado. O livro não é longo. São 210 páginas.

Do capítulo final tomo algumas reflexões; Nele, Russel afirma que, para o alcance da felicidade, devemos estar atentos aos fatores externos e internos a nós. Os externos são os da cultura dominante, à qual devemos nos inserir (ou adaptar?) e os internos são as nossas atitudes frente a essa situação. Tomar consciência desses fatores é de fundamental importância. Do capítulo fiz uma anotação especial: 

"Quando as circunstâncias externas não são francamente adversas, a felicidade deveria estar ao alcance de qualquer um, sempre que suas paixões e seus interesses se dirijam para o exterior e não para seu interior. Assim, deveríamos nos propor, tanto na educação quanto em nossa intenção de nos adaptarmos ao mundo, evitar paixões egoístas e adquirir afetos e interesses que impeçam que nossos pensamentos girem perpetuamente em torno de nós próprios. A rigor, ninguém pode ser feliz atrás das grades, e as paixões que nos encerram dentro de nós mesmos constituem um dos piores tipos de cárcere. As mais comuns entre essas paixões são o medo, a inveja, o sentimento de culpa, a auto-compaixão e a auto-admiração. Em todas elas, nossos desejos se encontram em nós mesmos: não existe um interesse genuíno pelo mundo exterior, só a preocupação de que possa nos causar mal ou deixar de alimentar nosso ego. É em virtude do medo que a pessoa resiste a admitir os fatos e se predispõe a encapsular-se num protetor abrigo de mitos. Mas os incidentes desagradáveis penetram no abrigo e aqueles que estavam habituados a ficar protegidos sofrem mais do que os que se temperaram, enfrentando as agruras da vida. Além disso, os que se iludem costumam saber que, no fundo, estão errados, e vivem em um estado de apreensão, temendo que algum acontecimento funesto os obrigue a aceitar realidades desagradáveis" (Página 206).

Enfim, viver é algo muito complexo. A cultura dominante ajuda a torná-los ainda mais complexos e opostos ao que chamamos de princípios humanos, de uma vida em convívios harmoniosos com a natureza e com a sociedade. O comum e a sua prevalência sobre o individual... Valores de solidariedade e sua prevalência sobre a competição... Creio que o tema nos remete a outra questão fundamental que é a questão da alteridade. Sobre ela deixo uma bela reflexão:

 http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/01/alteridade-albert-jacquard.html

Junto com a indicação da leitura, deixo a recomendação contida na contracapa: "Muito antes de ser laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1950, o filósofo e matemático Bertrand Russel já dava mostras de seu talento e sensibilidade nas letras. A conquista da felicidade, escrito em 1930, aborda um tema comum aos homens de todas as épocas e classes sociais. Que o leitor não espere, como o autor adverte, nem filosofia nem erudição profundas. O que move Russel nesta obra é a convicção de que, com um pouco de esforço bem-orientado, é possível chegar à felicidade".

quarta-feira, 16 de abril de 2025

O Apanhador no campo de centeio. J.D. Salinger. 1951.

Não se trata de um livro tão simples e de leitura fácil e fluente. Não é tão simples aguentar o mau humor do jovem Holden Caulfield, de dezessete anos, ao longo de vinte e seis capítulos que ocupam 206 páginas. Estou falando de um livro famoso, de um dos maiores best-sellers, de muitas polêmicas e proibições, O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger. A primeira publicação data do ano de 1951. O cenário é a cidade de Nova York. Anos posteriores à Segunda Guerra Mundial. O livro é escrito em primeira pessoa. Portanto, Holden narra a sua própria história.


O apanhador no campo de centeio. J.D. Salinger. Tradução: Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster. Editora do autor. 13ª edição.

Quem está em busca de um final da história, já a encontrará no primeiro parágrafo do primeiro capítulo: "Só vou contar esse negócio de doido que me aconteceu no último Natal, pouco antes de sofrer um esgotamento e de me mandarem para aqui, onde estou me recuperando". E diz mais, que talvez no mês seguinte, o seu irmão o levará à casa dos pais num jaguar de cerca de quatro mil dólares. Diz que ele está podre de rico, se "prostituindo" em Hollywood, isto é, no cinema. Percebem a crítica, uma das principais características do livro.

Daí começa a contar efetivamente a sua história. O acontecimento do Natal fora mais uma expulsão sua de colégio, agora, do famoso Internato Pensey, na Pennsylvania. Ele reprovara em quatro matérias, de cinco. Neste colégio professores e alunos viviam em mundos diferentes, a começar pela grande diferença de idade e as consequências daí decorrentes. O seu gosto pela leitura o salvara apenas na disciplina de inglês. Em grande parte dos primeiros capítulos Holden descreve o cotidiano do internato: seus colegas, os hábitos, as chatices, as intrigas, os esportes e as dificuldades nos relacionamentos. 

Depois começa a narrativa de sua saída. Isso ocorre num final de semana. Como as férias de Natal começariam apenas na quarta feira, ele não quer chegar em casa, antes desse dia. Assim fica vagando por Nova York. Gasta o tempo no hotel, com telefonemas, em boates e em bebedeiras, mesmo não tendo idade para beber. Mas tendo dinheiro... E por falar em dinheiro, gasta tudo o que lhe sobrara. O tempo do - nada a fazer - é o grande causador de suas angústias e tormentos. Inventa maneiras para fazê-lo passar. É o grande momento do livro. É o tempo das reflexões suas ou com colegas seus, ou com quem encontrasse e lhe desse atenção, sobre os mais diversos temas, entre eles, obviamente, a questão sexual.

No capítulo 16, ele fala de um disco -, Litle Shirley Beans. Sai em sua procura, pois quer dá-lo de presente para a sua irmãzinha, Phoebe, com a idade de dez anos. Holden a adora. Encontra o disco e o compra. Mas, lá pelas tantas, ele cai e quebra em pedaços. Ponho esse fato na resenha em função do significado de Phoebe em sua vida. Ela é praticamente a única pessoa que lhe faz bem. Voltaremos a falar dela. No mesmo capítulo também aparece o título do livro. Holden vê uma família andando pela rua. Um menino cantarolava, junto aos pais, que não lhe davam muita atenção. Ele cantarolava: "Se alguém agarra alguém atravessando o campo de centeio".

Essa música volta no capítulo 22. Nela encontraremos Holden e Phoebe, na casa dos pais, mas estes estavam ausentes, tinham saído. Conversam por um bom tempo. Vejamos uma parte desse diálogo: " - Você sabe o que eu quero ser? - perguntei a ela. - Sabe o que eu queria ser? Se pudesse fazer a merda da escolha? 

- O que? para de dizer nome feio.

- Você conhece aquela cantiga: 'Se alguém agarra alguém atravessando o campo de centeio'? Eu queria..

- A cantiga é 'Se alguém encontra alguém atravessando o campo de centeio'! - ela disse. É dum poema do Robert Burns.

- Eu sei que é dum poema do Robert Burns.

Mas ela tinha razão. É mesmo 'Se alguém encontra alguém atravessando o campo de centeio'. Mas eu não sabia direito.

- Pensei que era 'Se alguém agarra alguém' - falei. - Seja lá como for, fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos e ninguém por perto - quer dizer, ninguém grande - a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice". Página 168. É o livro!

Holden está decidido a ir para o oeste. Não quer um reencontro com os pais. Mas quer se despedir de Phoebe e lhe devolver os poucos dólares que ela lhe emprestara. Ela empaca e quer ir junto. É o momento em que também Holden decide ficar. Agora... é retomar o começo do post.

Mensagem..., fama do livro... Interrogações! O encanto e a doçura de Phoebe. E, por falar em canção, numa rápida procura no Google sobre o livro, encontro - sob o título inglês do livro - The Catcher in the Rye, ser ele também uma canção. Do Guns N'Roses. E segue a seguinte explicação: "A referência ao The Catcher in the Rye, um clássico da literatura americana, é central para entender a mensagem da canção.  Este livro é frequentemente associado à alienação e à luta contra a falsidade percebida na sociedade. A letra expressa um sentimento de descontentamento e confusão em relação ao mundo". Um mundo que, observem a data da publicação do livro, 1951. O mundo acabara de sair de uma Segunda... De uma Segunda Guerra Mundial...

E uma reflexão em que Holden entra na subjetividade de seu irmão, aquele de Hollywood. É sobre a guerra e sobre o exército: "Meu irmão D.B. ficou no exército quatro anos. Esteve na guerra mesmo - participou do desembarque do dia D e tudo - mas acho que ele detestava mais o exército do que a própria guerra" (Página 137). 







quarta-feira, 9 de abril de 2025

"A PRAGA DO PARÁ". Origens e crescimento do pentecostalismo assembleiano - 1911-1931. Rafael da Gama.

Numa de nossas habituais conversas no restaurante São Francisco, o mais antigo de Curitiba (1955), meu amigo Valdemar falava do livro Seja feita a Vossa Vontade - Nelson Rockfeller e o evangelismo na idade do petróleo, de Gerard Colby e Charlotte Dennet (Record, 1998 - 1060 páginas). O livro está disponível na Amazon, a um custo de R$ 1.000,00. Na sua apresentação se lê que Rockefeller juntou-se a Cameron Townsend, um líder evangélico, para, além das finalidades econômicas, combaterem o comunismo e evangelizarem os indígenas da amazônia. A apresentação termina assim. O empreendimento "resultou num dos episódios mais escandalosos da política imperialista americana com ataques à natureza, patrocínio de ditaduras, genocídios, exploração predatória de riquezas naturais e espionagem". 

Por óbvio, o livro me interessou. Mas, como estamos num período em que o governador do Paraná (Rato Júnior), usa as reposições salariais do funcionalismo público como poupança para investimentos..., fazendo despencar os nossos salários, acrescido ao elevado preço do livro, nem me passou pela cabeça a ideia de sua compra. Mas as buscas do livro nas pesquisas da Internet, me sugeriram outros títulos. Entre eles: "A praga do Pará" - origens e crescimento do pentecostalismo assembleiano (1911-1931), de autoria de Rafael da Gama, uma edição da Pluralidades, 2ª edição, 2024. Este eu comprei.

"A praga do Pará". Rafael da Gama. Pluralidades. 2024. 132 páginas.

A primeira coisa que eu tenho a dizer, é que Rafael Gama é historiador. E, na orelha da capa, ele se apresenta como "sempre, e principalmente, servo e amigo de Cristo". O livro historia fatos, historia as polêmicas geradas pelos fatos. O seu livro tem origem acadêmica e obedece aos ditames da metodologia científica. Um livro com toda a seriedade de um pesquisador. Notem que o título "A praga do Pará", está entre aspas. Ele está explicitado no capítulo quatro: "A heresia pentecostal": diálogos e tensões entre pentecostais e protestantes. É uma referência ao tratamento dado aos pentecostais pelos próprios protestantes em seus órgãos de imprensa. Vejamos um trecho da página 76: "São constantes as difamações em relação ao pentecostalismo, ao mesmo tempo que notamos a sua crescente expansão. Logo alguns anos após o início do movimento pentecostal na cidade, já percebemos periódicos batistas e presbiterianos opinando sobre "A heresia pentecostal" (1923), com nominações jocosas como "espírito de fogo" (1916), "A praga que veio do Pará" (1916), entre outras nomenclaturas que eram comuns nesses jornais".

Explicitado isso, vamos a algumas considerações sobre o livro. Com ele, você fica sabendo muito mais do que apenas a questão específica da chegada dos pentecostais à Belém, mas também sobre a religiosidade tradicional na cidade, de sua economia, estrutura social e econômica, crises de saúde e sanitárias, entre outros tantos temas. Observem a delimitação das datas - 1911-1931. Já somos um país republicano. Já instituímos a liberdade religiosa e separamos a Igreja e o Estado. Já estamos no final do ciclo da borracha, do final do século XIX e da primeira década do XX, que provocou, na região, a chamada Belle Époque. O pentecostalismo chega a Belém, portanto, numa época de profundas crises. 

Outro ponto notável do livro é a sua busca por fundamentos históricos, como o surgimento do protestantismo, sua expansão e as formas como ele se estabeleceu nos diferentes países, especialmente nos Estados Unidos. Este país divergiu do anglicanismo inglês e fez surgir novas denominações, entre as quais o autor destaca os metodistas, batistas e presbiterianos, denominações já presentes em Belém, quando da chegada dos adeptos do pentecostalismo. Outro ponto forte do livro é a forma como os Estados Unidos conceberam ou imaginaram a sua religiosidade, como povo eleito, ou como nação eleita e o espírito evangelizador e missionário decorrente. É um protestantismo fundamentalmente calvinista, ligado à prosperidade. Tem muito de Max Weber nas análises do autor. Sim, também tem toda a história da festa de Nossa Senhora de Nazaré.

O livro é estruturado em prefácio, introdução e seis capítulos, assim titulados: 1. Belém do Pará: catolicismo e hegemonia social; 2. "A verdadeira fé": o protestantismo no Pará; 3. De Los Angeles a Belém do Pará: o surgimento do movimento pentecostal; 4. "A heresia pentecostal": diálogos e tensões entre pentecostais e protestantes; 5."A cura para os leigos": diálogos entre o pentecostalismo e a cidade; 6. "Da violência simbólica à física: diálogos e conflitos entre católicos e pentecostais; Considerações finais e uma rica indicação de referências bibliográficas.

O prefácio, assinado por Gedeão Alencar, destaca a Primeira Missa do 21 de abril de 1500 para oficializar o descobrimento e a oração pentecostal, de 24 de outubro de 2018, após o TSE proclamar o resultado das eleições presidenciais, anunciando Jair Bolsonaro como presidente. Observação bem de acordo com o tema do livro. Momentos históricos diferentes. Disputas do imaginário religioso.

Na Introdução são apresentadas as razões do livro e a sua estruturação básica. Ele é uma decorrência de suas pesquisas de doutorado na PUC/SP. Chama a atenção dos fatos históricos mais importantes do período e o vertiginoso crescimento do pentecostalismo, sendo a Assembleia de Deus, a denominação de maior número de adeptos no Brasil de hoje, num total de mais de 12 milhões de seguidores. "Assembleia de Deus", foi a denominação da primeira igreja fundada pelos pentecostais em Belém.

No primeiro capítulo o autor explicita princípios da doutrina católica, a origem histórica de Santa Maria de Belém do Grão Pará, o sincretismo das religiões dos povos que ali se encontraram, índios, negros e colonizadores brancos, a centralização da fé em Nossa Senhora de Nazaré e a sua história e a economia gomífera (ascensão e declínio). O catolicismo como religião hegemônica sob o comando dos padres barnabitas, ordem religiosa que fora banida na França. Seus órgãos de imprensa e o combate ao protestantismo.

No segundo capítulo são apresentados os protestantes e seus fundamentos religiosos que os diferenciaram do catolicismo, com destaque de uma ligação direta com Deus, sem as mediações típicas e próprias do catolicismo. Se dedicam ao expansionismo, e dividem a América, com a ocupação de sua área norte. A sua consideração como "povo eleito", a "nova Israel". A fé que se impregna num modelo econômico e social. Se elegem como uma "nação modelo", uma referência à prosperidade. De acordo com a finalidade do livro, destaca a presença de missionários suecos nos Estados Unidos. Serão esses suecos que chegarão mais tarde a Belém. o destaque vai para as denominações dos metodistas, batistas e presbiterianos.

O terceiro capítulo é um dos centrais do livro. Ele retrata a origem do pentecostalismo nos Estados Unidos, na cidade de Los Angeles. Dá até o endereço da rua Azusa. Apresenta o "batismo com o Espírito Santo", êxtases, falar línguas, visões e avivamentos, como suas grandes inovações. Vejam uma descrição do "Los Angeles Daily Times", que mostra, tanto as inovações trazidas, quanto a sua recepção nada favorável: "Respirando palavras de estranhos e pronunciando um credo que parece que nenhum mortal poderia entender, a mais nova seita religiosa começou em Los Angeles [...] a estranha doutrina pratica os ritos mais fanáticos [...] Pessoas de cor e uns poucos brancos compõem a congregação, e a noite se torna horrível na vizinhança pelos uivos adoradores, que passam horas se balançando para frente e para trás em uma atitude de oração e súplicas enervantes. Eles alegam ter 'o dom de línguas' e serem capazes de compreender a babel [...] Então é que o pandemônio se solta [...] em uma exaltação de zelo religioso". Nada lisonjeiro. A referência às pessoas de cor se deve a um filho de ex-escravizados, Willian Seymour, entre os fundadores. Entre os seus primeiros adeptos também figuravam os suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren. Estes trouxeram a doutrina a Belém (página 63-64).

O quarto capítulo é dedicado às primeiras atividades dos dois missionários, a sua acolhida pelos batistas e metodistas e as desavenças. Foram expulsos de um local onde faziam as suas celebrações e, já em um novo local, os dois e mais dezessete seguidores, lançaram a sua nova denominação, primeiramente como Missão de fé apostólica e depois lhe deram a designação pela qual ficaram denominados no Brasil: Assembleia de Deus. (página 72). No capítulo ainda é mostrada a sua rápida expansão e as causas para esta expansão. Uma religião que prima pelo testemunho e não pela razão.

Aí já entramos no quinto capítulo, uma análise da recepção dessa nova denominação. Ela se assenta em uma sociedade em profunda crise, crise econômica e social e crise de epidemias como a malária, a lepra, a febre amarela, a cólera e a tuberculose. Testemunhos de cura, caem bem em meio a esta realidade. Glossolalia, curas e ampla participação popular impulsionaram a expansão.

O sexto capítulo versa sobre a relação com os católicos. É fácil de entender. O catolicismo era a religião hegemônica e que tudo fez para não perdê-la. Era a religião do poder e este foi usado a seu serviço. Da violência simbólica partiu-se para a violência física da atuação policial. São retratadas cenas dessas violências, especialmente as da cidade de Bragança. 

Das considerações finais tomo o último parágrafo: "Essa reação violenta do catolicismo diante do pentecostalismo mostra mais um estranhamento em relação à ameaça de perda de sua hegemonia. Mostra um processo que se desenrola até os dias de hoje, com um pentecostalismo diverso e pulverizado, atuando fortemente nas periferias do país, em ascensão desde a sua chegada no Brasil através da região amazônica. Estudar o pentecostalismo em sua origem, expansão e consolidação nas primeiras décadas de sua formação no Norte do país, nos faz entender melhor a religiosidade brasileira não apenas no Pará, mas em todo o território nacional no período republicano, trazendo também reflexões sobre o crescimento do pentecostalismo que seguem até os dias atuais. Entender o movimento pentecostal é, assim, procurar entender toda a complexidade do cenário religioso brasileiro, em suas diferentes nuances e manifestações".

Estão abertos os debates.

Deixo ainda dois livros, um deles muito presente nas análises do autor. A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/01/a-etica-protestante-e-o-espirito-do.html e outro, numa visão bem crítica, Os demônios descem do norte, de Délcio Monteiro de Lima. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/12/os-demonios-descem-do-norte-delcio.html

quinta-feira, 3 de abril de 2025

A RELIGIÃO NO ELDORADO OU NA TERRA SEM MALES. A partir de Cândido - Voltaire.

Voltaire é extraordinário. Termino de ler dois de seus assim chamados - contos filosóficos. A sua forma de conhecer a realidade do mundo é bem inventiva ou criativa. Em Cândido, os personagens viajam pelo mundo, entrando assim em contato com diferentes realidades. Já em O Ingênuo será um índio da América do Norte que exporá a realidade de seu mundo, ao chegar na França e entrar em choque com a civilização do ocidente cristão. Uma forma bem original para expor as suas concepções de mundo e de as confrontar com os seus adversários.

Contos. Voltaire. Cândido ou o otimismo. Abril. 1972. Páginas 149-238. Tradução: Mário Quintana.

Voltaire é um crítico mordaz da cultura ocidental, especialmente no que se refere a sua parte religiosa, qual seja o cristianismo e o comportamento dos mandatários de suas estruturas. Uma dissonância e um distanciamento enorme entre a teoria e a prática. (Ao escrever este post, estou vestindo uma camiseta, com uma estampa de Paulo Freire e um dito seu: "É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática"). Uma questão de coerência.

Neste post eu quero destacar um diálogo que Cândido teve quando ele, após ter passado por Buenos Aires, onde forçosamente tem que se separar de sua Amada Cunegundes e de passar pelas missões jesuíticas do Paraguai, ele chega ao Eldorado, onde o seu hospedeiro o coloca em contato com o homem mais sábio do reino. Eles versam sobre muitos temas, mas o mais impressionante é a sua exposição sobre a religião que era praticada no antigo império inca. Vejamos o relato do encontro:

"A conversação foi longa; versou sobre a forma de governo, os costumes, as mulheres, os espetáculos públicos, as artes. Afinal Cândido, que sempre tivera gosto pela metafísica, indagou, por intermédio de Cacambo, se no país não havia uma religião.

O velho enrubesceu um pouco.

Como pode o senhor duvidar de tal coisa? - perguntou ele. - Será que nos toma por ingratos?

Cacambo perguntou humildemente qual era a religião de Eldorado.

O velho corou de novo.

- Acaso pode haver duas religiões? disse ele. - Temos, creio eu, a religião de todo mundo: adoramos a Deus dia e noite.

- Não adoram senão a um único Deus? - interrogou Cacambo, sempre servindo de intérprete às dúvidas de Cândido.

- Quer-me parecer - tornou o velho, formalizado - que não há nem dois, nem três, nem quatro deuses. Francamente, fazem cada pergunta!

Cândido não se cansava de interrogar o bom velho; quis saber como rezavam a Deus em Eldorado.

- Não lhe rezamos - disse o bom e respeitável sábio. - Nada temos que lhe pedir; ele nos deu tudo o que precisamos; nós lhe agradecemos sem cessar.

Cândido teve curiosidade de ver os sacerdotes; e perguntou onde estavam.

O bom velho sorriu.

- Meus amigos - disse ele -, nós todos somos sacerdotes; cada manhã, o rei e todos os chefes de família entoam, solenemente, cânticos de  ações de graça; e cinco ou seis mil músicos os acompanham.

- Como, os senhores não tem padres que ensinam, que disputam, que governam, que cabalam, e que mandam queimar as pessoas que não são de sua opinião?

- Só se fôssemos loucos - disse o velho. - Aqui somos todos da mesma opinião, e não entendemos o que quer o senhor dizer com os seus padres.

Cândido, a cada uma dessas palavras, caía em êxtase e dizia consigo: 'Como tudo isto é diferente da Vestfália e do castelo do senhor barão! Se o nosso amigo Pangloss visse Eldorado, não diria mais que o Castelo de Thunder-ten-tronckh era o que havia de melhor sobre a face da terra; não há dúvida de que é preciso viajar'". Páginas 194-195.

Por aí dá para ver que não era por nada que Voltaire era tão radicalmente anticlerical. Deixo a resenha de Cândido, ou o otimismo. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/03/candido-ou-o-otimismo-voltaire-1759.html   e também O Ingênuo.  http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/03/o-ingenuo-voltaire-1767.html

Mas - permitam-me falar um pouco de Voltaire. Da parte final de sua vida. Se antes ele não levava uma vida exemplar, ao menos cristãmente falando, o final dela foi coroado de virtudes incontestáveis. Vejamos o livro de dados biográficos que acompanha a coleção da Abril. Esta parte final o tornou famoso como o filósofo pregador da tolerância. Vejamos:

"E teria continuado nessas atividades (distribuição de justiça, irrigação de áreas rurais, lutas contra epidemias de gado, abertura de uma fábrica de relógios e de escolas) se não tivesse recebido, num dia incerto de 1761, a visita de uma família aterrorizada, contando uma fúnebre estória de perseguição. Um jovem suicidara-se em Toulouse. Existia, contudo, uma lei pela qual o corpo dos suicidas devia ser arrastado pelas ruas e, depois, enforcado em público. O pai do rapaz, Jean Calas, arranjara tudo para que o suicídio parecesse morte natural e o corpo do filho fosse respeitado. Mas Calas era protestante, e acabou sendo acusado de ter assassinado o filho para que não se convertesse ao catolicismo. Foi preso, torturado e condenado à morte.

Enquanto Voltaire defendia a família e a memória de Jean Calas, o corpo de Elisabeth Sirven foi encontrado num poço. A família também era protestante e o juiz acusou os pais de terem matado a jovem. Voltaire, indignado, lançou uma campanha, contratou advogados, redigiu defesas e enviou-as para os tribunais. Concomitantemente escreveu seu famoso Tratado sobre a tolerância.

Esses casos ainda estavam na ordem do dia quando, em 1767, o jovem La Barre, de família protestante, foi acusado de mutilar crucifixos. Ao ser preso, encontraram em seu poder um exemplar do Dicionário filosófico, escrito com a intenção explícita de ridicularizar o fanatismo católico.

O livro obtivera um êxito fantástico. 'Punham-no debaixo das portas, penduravam-no nos cordões das campainhas, os bancos dos passeios públicos andavam repletos dele. Nos lugares de ensino religioso substituía, como por encanto, os catecismos'. [...] Do caso La Barre em diante, a atividade de Voltaire assemelha-se à erupção de um vulcão. O escritor torna-se sério. 'Durante todo esse tempo', diria depois, 'não me escapou um sorriso que não me parecesse um crime'.

[...] Voltaire inundou o país de panfletos, livros, ironias, apelos. Todas as suas cartas terminavam com um veemente apelo: Écrassez l'infâme - Esmagai o infame. No início, seus inimigos tentaram barrar essa avalancha. Os livros eram queimados em praça pública. Inútil. Cidadãos desconhecidos, admiradores do autor, faziam reimpressões clandestinas, algumas das quais atingiram 300.000 exemplares. Madame Pompadour lembrou-se de que ele era sensível a títulos e dinheiro, e ofereceu-lhe o cargo de cardeal e a reconciliação com a corte. Voltaire nem sequer respondeu".

[...] "Em Paris recusaram-lhe sepultura cristã. Os amigos colocaram o corpo numa carruagem, fazendo-o passar por vivo, e levaram-no até Salier, onde foi enterrado. Doze anos depois, a Assembleia Nacional da Revolução obrigou Luís XVI a transladar o corpo para o Panteão de Paris. Setenta mil pessoas seguiram o cortejo.

Sobre seu túmulo Voltaire pedira que escrevessem apenas uma frase: 'ELE DEFENDEU CALAS'.


segunda-feira, 31 de março de 2025

A DITADURA DE 1964. OS CINCO VOLUMES DO ELIO GASPARI.

Como estamos nos avizinhando de mais um fatídico primeiro de abril e - para dizer em alto e bom som - que "AINDA ESTAMOS AQUI", quero deixar, num único post, a resenha de cada um dos cinco volumes sobre este triste período de nossa história, o da ditadura civil militar instaurada em 1964. Eles são fruto de muito trabalho de pesquisa e, com toda a certeza, se constituem numa das maiores fontes para conhecer este período de nossa história. Os cinco volumes tem os seguintes títulos: 1. A ditadura envergonhada: as ilusões armadas. 2. A ditadura escancarada: as ilusões armadas. 3. A ditadura derrotada. o sacerdote e o feiticeiro. (Geisel - o sacerdote - Golbery - o feiticeiro. 4. A ditadura encurralada: o sacerdote e o feiticeiro. 5. A ditadura acabada.

Esta ditadura durou longos e infinitos 21 anos (1964-1985) e, como terminou mal, com uma anistia que perdoou crimes cometidos pelo Estado, fato que provocou repiques ditatoriais, com elogio a torturadores e tentativas de golpe, como vimos ao longo de todo o governo Bolsonaro, é que quero deixar esta pequena contribuição no sentido de que mais gente, especialmente os da geração que não viveu o período, tomem o devido conhecimento dele, para que ele não se repita, nem como tragédia, nem como farsa.  SEM ANISTIA PARA OS GOLPISTAS.

O post também tem a finalidade de remeter para a leitura da obra do Elio Gaspari, numa espécie de provocação, no bom sentido do termo - pro-vocare, do chamar para... As ditaduras torturam e matam - em nome da manutenção do estado das coisas - manutenção de privilégios e exclusão social. Boa leitura e saudações democráticas e civilizatórias. 

Volume 1.

A ditadura envergonhada. Elio Gaspari.


Volume 2. 

A ditadura escancarada. Elio Gaspari.


Volume 3. 

A ditadura derrotada. Elio Gaspari.





A ditadura encurralada. Elio Gaspari.


Volume 5. 


A ditadura acabada. Elio Gaspari.





sexta-feira, 28 de março de 2025

O Ingênuo. Voltaire. 1767.

Depois de Cândido, mais Voltaire. Outro de seus contos filosóficos. O Ingênuo - História verdadeira, tirada dos manuscritos do padre Quesnel. Como Voltaire gostava de ocultar a sua autoria! O conto tem certas semelhanças com Cândido. O tema é uma análise do mundo e de todos os males que ele contém. Agora a interlocução não será com Pangloss (Leibniz) mas com o Ingênuo, ou com Hércules Ingênuo, depois de seu batizado. Ingênuo é um nativo americano, um índio hurão. Um ser muito próximo de um ser natural, não corrompido e estranho aos costumes da civilizada França. Percebem a presença de Rousseau.

Contos. Voltaire. 1972. Páginas 297 -359. Tradução: Mário Quintana.

Diferente do ocorrido em Cândido, quando os principais personagens conhecem o mundo através de viagens, pelas quais entram em contato com diferentes realidades, em O Ingênuo, será este "selvagem" que entrará em contato com a "civilização" e mostrar todo o seu inconformismo com os hábitos, costumes e instituições, que são para ele, estranhas e absurdas. Percebeu grandes diferenças entre os ingleses e os franceses. Ele se familiarizara mais com a Inglaterra (Voltaire era grande admirador da Inglaterra). Mas, como era ingênuo, os franceses facilmente o convenceram a combater ao lado dos franceses contra os ingleses.

O Ingênuo chega às costas da França, no Priorado da Montanha, priorado fundado por Irlandeses. Outros irlandeses tinham vindo para a América do Norte. Já nas primeiras conversas, por um talismã que Ingênuo trazia, se descobrem parentes. Estes parentes lhe dão boa acolhida e Ingênuo logo se encanta pela bela jovem, St. Yves. Imediatamente quer com ela se casar, mas os costumes eram bem outros. St. Yves também tinha outros pretendentes. Seus parentes o fazem aceitar os costumes da terra e o primeiro passo para isso foi o seu batizado. Daí por diante será Hércules Ingênuo. Falaram-lhe dos feitos de Hércules, ocultando porém, que o herói transformara, numa única noite, cinquenta donzelas em mulheres. O fazem ler a Bíblia.

Como se destacara na guerra contra os ingleses, lhe recomendam apresentar-se ao rei. A caminho janta com os huguenotes, inimigos do rei e do papa. O rei e a sua corte são informados desse fato. Ingênuo já granjeara inimigos, especialmente por parte do bailio (uma espécie de xerife) que pretendia casar o seu filho com a bela St. Yves. Isso era motivo suficiente para delatar o pobre do Ingênuo. Ser huguenote equivalia a ser inimigo declarado do rei. Chegando à corte de Versalhes, imediatamente será trancafiado na Bastilha, condenado ao abandono perpétuo. Lá terá um encontro com Gordon, um sábio, condenado por ser jansenista. Ele tinha também alguns livros. Ele sofre grande transformação, que ele próprio constata: "Sinto-me tentado, a crer nas metamorfoses, pois fui transformado de bruto em homem".

Se ele estava completamente esquecido pelas autoridades, o mesmo não acontecia com a bela St. Yves. Ela, ao ver-se diante de um casamento forçado como o filho do bailio, e sabendo da prisão, vai a Paris. Mas lá os padres e as demais autoridades estão muito entretidos com diversões e ela não consegue audiências. Por fim é recebida por um padre jesuíta, que procura interceder por ela. Ela então é posta em contato com o poderoso sr. Pouange, que movido pela beleza da jovem, procura usar de seu poder em favor da jovem desde que, devidamente recompensado. Um padre a convence que deve ceder. Se o ato é vil, a finalidade é, no entanto, nobre e, assim a convence a ceder. Toda a argumentação estava bem fundamentada em Santo Agostinho.

Pouange não falha e Ingênuo e Gordon são libertados. Mas as dores do remorso e da culpa fazem com que St. Yves adoeça e tudo termine em tragédia. Pouange, que não era ruim de todo, pois não nascera mau, procura reparar o mal feito, concedendo benefícios aos dois, agora inseparáveis amigos. Sob o dístico de que o tempo tudo abranda, Ingênuo tornou-se bom guerreiro e intrépido filósofo. É... O tal do processo civilizatório.

O livro de contos da coleção dos Imortais da Literatura Universal tem notas introdutórias de Sérgio Milliet. Nas que antecedem ao O Ingênuo, lemos a seguinte nota: "O interesse deste romance, em que Voltaire volta, após o sarcasmo de Cândido, à fantasia menos cruel de seus primeiros contos, está em consistir ele numa exposição crítica da tese de J. J. Rousseau sobre o homem natural. O princípio é bem característico da filosofia do genebriano: o Ingênuo é honesto, franco, espanta-se com nossas ridículas convenções, mas a conclusão se revela contrária à ideia da volta à natureza".

O conto é relativamente curto. Umas sessenta páginas e vinte capítulos. O uso de personagens indígenas estava muito em voga entre os romancistas europeus da época. Deixo também a resenha de Cândido. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/03/candido-ou-o-otimismo-voltaire-1759.html

segunda-feira, 24 de março de 2025

CÂNDIDO OU O OTIMISMO. Voltaire. 1759.

Impressionante! Grande Voltaire! Retomando os livros da coleção Os Imortais da Literatura Universal, tomei em mãos o livro de número 40 - Contos, de Voltaire. O livro tem em seu total 672 páginas e contém seus principais contos. Voltaire usou os chamados contos filosóficos para debater e expor os seus posicionamentos e contestar os seus adversários. A ironia será sempre a sua principal arma. E que ironia! Comecei a minha leitura pelo seu conto mais famoso: Cândido ou o otimismo - Traduzido do alemão do senhor doutor Ralph. Com os aditamentos encontrados no bolso do doutor, por ocasião da sua morte em Minden, no ano da graça de 1759. Eis o título completo do conto.

Contos. Voltaire. 1972. Tradução: Mário Quintana. Páginas: 149-238.

Vamos a algumas contextualizações. Creio, que, antes de ler Voltaire, necessariamente precisamos conhecer alguns dados biográficos seus e ver com quem ele estabelecia os diálogos e quais eram as suas concepções de mundo. Para o caso específico de Cândido, é fundamental saber sobre o panorama da filosofia na Europa, neste período da segunda metade do século XVIII. Os filósofos em evidência são os alemães Leibniz (1646-1716) e Wolff (1679-1754). Eles professavam que vivemos no melhor possível dos mundos. Não precisamos entrar em detalhes, uma vez que no conto tudo isso estará bem explicitado.

O primeiro fato que é necessário ter em conta para interpretar Cândido é o de que Pangloss, um dos personagens fundamentais, é Leibniz. Será ele o preceptor de Cândido. Será ele que infundirá no seu jovem discípulo um otimismo insofismável. O conto começa na Alemanha, na Vestfália, onde encontraremos os primeiros personagens: Pangloss, Cândido, Cunegundes e o barão, seu pai. As desventuras que ali ocorrem, os levam a percorrer o mundo. Assim o conhecerão, não por imaginação ou descrição, mas por experiência. Lembrando ainda, que Cândido alimenta uma paixão doentia pela bela jovem Cunegundes. Casar com ela e ser feliz é o grande sonho de sua vida. Será a felicidade no melhor dos mundos.

O conto é cheio de viagens, de conflitos e de guerras, de mortes e ressurreições, de fugas e de encontros com sábios e com o povo. Esses contatos os põem em contato com a realidade do mundo. Conhecem a Europa e conhecem a América. Os personagens principais se desencontram e outros entram em cena. Experiências fantásticas são vividas e a questão que os acompanha está onipresente: Que mundo é este? Assim como também a visão de felicidade de Cândido, em ver o seu amor por Cunegundes ser correspondido, embora todas as suas submissões que afetaram a sua dignidade.

A passagem pela América merece um destaque maior. Depois de passarem por Buenos Aires, onde Cunegundes permanecerá presa, e pelo império dos jesuítas no Paraguai, Cândido e o seu amigo Cacambo chegam ao Eldorado. Este sim, é o reino onde, sob a concordância de todos, não há males. Apenas Cândido permanecerá infeliz por causa da ausência de sua grande paixão. Dois destaques nesta visita ao Eldorado: as grandes riquezas e a discussão com um sábio sobre a religião. A Deus nada pedimos. Apenas agradecemos, lhes confidencia o sábio. São agraciados com presentes que tornam sua riqueza inesgotável. Outra passagem notável ocorre no Surinam, onde Cândido encontra o sábio Martinho  e a visão que tem da escravidão na lavoura canavieira. "É o preço do açúcar na Europa". Um encontro direto com o Mal. Pangross, não está presente nessa discussão. Ele fora vítima da inquisição.

Cândido fica sabendo que Cunegundes está em Veneza e ele então empreende todos os esforços para ir à cidade. Acompanhado de Martinho, contratam viagem. São logrados por todos, mas como vimos, agora são portadores de fortuna que não acaba. Passam pela França, pela Inglaterra e chegam a Veneza, onde tem uma passagem fantástica, a visita que fazem ao Sr. Pococurante. Cunegundes ainda não chegara. Nos países visitados só horrores e males e a conclusão de que a única terra sem males é mesmo  Eldorado.

Em Veneza sabem que Cunegundes está em Constantinopla, trabalhando como escrava, velha e feia. Será para lá que se dirigirão. E, já na parte final do conto, os personagens se reencontram. Cândido perde o seu encanto por Cunegundes, mas diante do não consentimento do barão, o pai da noiva, no casamento, ele desafia a ordem.  Pangloss dá seu consentimento, Martinho quer lançar o barão ao mar e Cacambo quer fazer voltá-lo às galés. 

O trigésimo e último capítulo do conto é dedicado a conclusões. Vejamos os diálogos finais: "Também sei - disse Cândido - que é preciso cultivar nosso jardim (antes um sábio turco lhe falara sobre o trabalho que evita os males do tédio, do vício e da necessidade).

- Tens razão - disse Pangloss -, pois, quando o homem foi posto no jardim do Éden, ali foi posto ut operaretur eum, para que trabalhasse; o que prova que o homem não nasceu para o repouso.

- Trabalhemos sem filosofar - disse Martinho; - é a única maneira de tornar a vida suportável.

Todo o grupo se compenetrou desse louvável desígnio. A pequena propriedade rendeu bastante. Cunegundes estava, na verdade, muito feia, mas tornou-se uma excelente doceira. Paquette bordava. A velha costurava. Nem mesmo o irmão Giroflée se furtou ao trabalho; revelou-se um bom marceneiro; e até se tornou honesto (o happy end de Pangloss).

- Todos os acontecimentos - dizia às vezes Pangloss a Cândido - estão devidamente encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois, afinal, se não tivesse sido expulso de um lindo castelo, a pontapés no traseiro, por amor da Srta. Cunegundes, se a Inquisição não te houvesse apanhado, se não tivesses percorrido a América a pé, se não tivesses mergulhado a espada no barão, se não tivesses perdido todos os teus carneiros da boa terra de Eldorado, não estarias aqui agora comendo doce de cidra e pistache.

- Tudo isso está muito bem - respondeu Cândido - mas devemos cultivar nosso jardim".

Mas antes, diante de suas próprias desgraças, Panglos já havia afirmado para Cândido: " - Mantenho a minha primitiva opinião - respondeu Pangloss -, pois, afinal, sou filósofo; não me convém desdizer-me, visto que Leibniz não pode incorrer em erro, e a harmonia preestabelecida é a mais bela coisa do mundo, bem como o todo e a matéria sutil". Questões de filosofia.

 

domingo, 23 de março de 2025

A ROMANA. Alberto Moravia. 1947.

A minha última leitura foi A pele, de Curzio Malaparte. Um instigante livro sobre Nápoles, sobre a Itália e a Europa do pós Segunda Guerra Mundial. Por óbvio, Malaparte traçou um panorama profundamente depressivo e desolador. O que ler depois? Resolvi continuar na Itália, com o mesmo tema e a mesma época. E, um livro da mesma coleção - Os Imortais da Literatura Universal. A Itália do pós guerra. O livro da vez então foi A Romana, de Alberto Moravia. Adriana, a romana do título, é a personagem principal, que junto a todos os outros personagens, tem um encontro com as suas vidas, vidas absolutamente desencontradas. Enfrentam ambientes psicológicos destituídos de perspectivas. Deixo o link da resenha de A pele. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/03/a-pele-curzio-malaparte-1949.html

A romana. Alberto Moravia. Abril. 1972. Tradução: Marina Colasanti.

O livro é do ano de 1947. Tempo de reconstrução. Reconstrução de sonhos? Quais as razões para tantas angústias diante do destino? Vejamos primeiramente algo sobre o autor. Moravia nasce no ano de 1907. O sonho familiar era destiná-lo para a diplomacia. Uma doença, no entanto, impede a realização desse sonho. Era portador de uma tuberculose óssea (infecção grave que afeta ossos e articulações, me diz uma rápida consulta ao Google), que o obrigou a uma vida reclusa. Segundo ele próprio, este foi um dos fatores determinantes em sua vida. Outro seria a ascensão do regime fascista, iniciado em 1922, sob o comando de Mussolini. Um encontro permanente com o autoritarismo e a censura. 

O seu primeiro romance - Gli Indifferenti - lhe marca as características que o acompanhariam ao longo de sua vida de escritor. As ácidas críticas à decadente burguesia de Roma e às instituições a ela vinculadas, como o tradicionalismo, o casamento, a falsidade moral e o apego à propriedade. O sucesso despertou a censura e o livro foi proibido a partir de sua quinta edição. O livro de biografias que acompanha a coleção, lhe aponta uma segunda característica, de fundamental importância: "Outro traço do romance de estreia de Moravia é o perfil das personagens, cujos sentimentos básicos (tédio, indiferença, desatenção, náusea) permeiam toda a obra. Por isso, mais tarde, Gli Indifferenti seria considerado o primeiro romance existencialista europeu, escrito dez anos antes que Sartre e Camus, filosoficamente mais conscientes do que Moravia, dessem corpo ao existencialismo como corrente literária". Precursor do existencialismo.

A romana, livro de 1947, repetiria o êxito popular de seu romance de estreia. Ao livro incorpora novos personagens que conhecera ao longo de uma fuga e refúgio no norte da Itália, já sob a dominação nazista, pouco antes do final da Segunda Guerra: "O refúgio do estábulo dera-lhe a ideia de outro tipo de personagem, mais simples, preocupado basicamente em ganhar a vida", como lemos no livro de biografias. A romana começa a ser escrito no ano de 1945.  Adriana será a protagonista. E uma característica toda especial do livro. Será ela a narradora de sua vida, tudo em primeira pessoa. Me lembrei muito de Madame Bovary, quando Gustave Flaubert afirma ser ele a dita madame.

A respeito dessa sua tática de escritor, ele mesmo comenta: "... Essa técnica, essencialmente fotográfica, tem a vantagem de levar o leitor a uma intimidade maior com as situações do romance: 'Adriana, a romana, falando na primeira pessoa, poderia referir-se com mais liberdade, a qualquer coisa de Roma do que eu próprio, também romano, poderia fazê-lo'. Entretanto, a técnica trazia também problemas, colocados pela linguagem necessariamente restrita da personagem, cujo perfil simples e popular limita o vocabulário, obriga ao uso do dialeto romano e não pode ultrapassar, com suas explicações, o limitado universo cultural de que faz parte". Eu, da minha parte, devo dizer que esta estratégia tornou a sua leitura extremamente agradável.

E o romance? Adriana é uma menina de muitos sonhos, os dela e os de sua mãe. Sua beleza seria o meio para a realização desses sonhos, sempre instigada pela mãe. Torna-se modelo para pintores. Posa nua. Se envolve em relacionamentos, todos muito complicados. Chamaria atenção para quatro deles: Gino, um motorista casado, Mino, um estudante e militante político, Astarita, um policial do sistema fascista e Sonzogno, um criminoso. O seu envolvimento com esses personagens faz o romance ter uma fluência maravilhosa e a leitura ser agradável. A ingenuidade de Adriana, bem como a de sua mãe, a torna uma personagem que gera certa empatia, uma torcida para que tudo dê certo em sua vida. Mas isso seria o oposto do romance. O romance também mereceu o furor dos católicos, que o colocaram no INDEX, o índice de livros proibidos.

O livro é dividido em duas partes, as duas fases da vida de Adriana. A primeira consta de nove capítulos e a segunda de onze. Ao todo, soma 415 páginas. "... A ideia de outro tipo de personagem, mais simples, preocupado basicamente em ganhar a vida". É Adriana. e... Adeus aos sonhos românticos. Vejamos o parágrafo final da obra:

"Sozinha, senti minha dor quase aliviada pelo que tinha dito aos dois (ex companheiros de Mino). Pensei em Mino e depois pensei no meu filho. pensei que nasceria de um assassino e de uma prostituta; mas todo homem pode matar um dia e toda mulher pode entregar-se por dinheiro. O que mais importava era que nascesse bem e crescesse forte e sadio. E decidi que, se fosse homem, chamar-se-ia Giácomo (Mino), em lembrança de Mino. Mas, se fosse mulher, Letícia,, pois queria que, ao contrário do que se dera comigo, tivesse uma vida alegre e feliz, e tinha certeza de que, com a ajuda da família de Mino, assim haveria de ser". Olha a réstea de esperança... A caixa de Pandora.





terça-feira, 18 de março de 2025

A PELE. Curzio Malaparte. 1949.

Em julho de 2012 eu, definitivamente, me aposentei da sala de aula. Foi uma decisão muito difícil deixar este local onde sempre me senti muito bem. Junto com a aposentadoria, eu mesmo me presenteei com uma viagem de trinta dias pelos locais fundadores da cultura ocidental. Assim me vi em Roma, em Delfos, em Atenas, na Sicília, em Nápoles e Pompeia. Estive na Ponte Vechio e percorri os trajetos de Dante na sua amada Florença, vi a poderosa Milão e, em Gênova, saí do porto, assim como milhares de emigrantes em busca de novos destinos. Em Verona fiz uma visita a Romeu e Julieta, andei de gôndola na Sereníssima República de Veneza, fui a Assis e na estrangeira República de San Marino. De volta a Roma, ainda com tempo para pedir uma bênção ao papa, voltamos ao Brasil.

A pele. Curzio Malaparte. Abril. 1972. Tradução: Alexandre O'Neill.

Mas, por que estou contando isso? Por um motivo muito simples. Estando em Nápoles, fomos visitar a famosa ilha de Capri, onde moram as sereias. Lá fizemos uma viagem de barco ao redor da bela ilha. E, me lembro bem, que o guia que nos acompanhava nos apresentou uma casa. Era a casa do escritor Curzio Malaparte. Ele nos falava da maravilha dessa casa e dos grandes encontros que nela se realizavam. Lembro que fiquei bastante intrigado com essa apresentação. Mas ficou por isso, diante de tantos encantos que as paradisíacas paisagem nos ofereciam.

Agora a ligação dos fatos. Tenho em casa, em minha modesta biblioteca, a coleção de Livros da Abril - Os imortais da literatura universal. Entre eles, o de número 46, A pele, de Curzio Malaparte. Me impus a tarefa de ler os que ainda não lera e reler os maiores clássicos. Assim tomei em mãos, tanto o livro, quanto o livro de biografias e contextualizações, que acompanha a coleção. Fui à biografia, antes da leitura do livro. Ele me encheu de curiosidades e com uma imensa vontade de ler uma biografia melhor trabalhada sobre o autor. Uma vida cheia de conturbações e de mudança de posições. Dou alguns dados, mas antes quero dizer que Curzio Malaparte é o pseudônimo de Kurt Erich Suckert. O Malaparte é em oposição a Napoleão, que era Bonaparte.

Do livro de biografias tomo a apresentação do escritor: "Ilha de Capri, 1943. Kurt Erich Suckert (1898 - 1957), escritor e jornalista, volta as costas para a Europa de chamas e ruínas, e olha para o mar.

Ondas e gaivotas. Estranhos os sons semi-sonolentos do oceano a contrastarem com os ruídos incisivos que haviam acompanhado Suckert nos últimos quatro anos: palavras, gritos de homens irados, eco de passos marciais sobre o asfalto, uivo de obuses, próximos e distantes, latir nervoso de armas automáticas, riso cruel de metralhadoras, botas apressadas sobre a lama. E o som do sangue, alto e agudo, sangrando lento das veias do continente moribundo.

Quatro anos de guerra. A Europa tuberculosa expectora balas de ferro. Mas os canhões cansados já denunciam a agonia do paciente. Esmagado, arruinado, destruído.

Como político, como correspondente de guerra, como ser humano, Kurt Erich Suckert esteve nas várias frentes de decisões: Alpes franceses, Polônia, Rússia, Finlândia, Alemanha, Itália.

Escombros e ruínas de cidades e homens. Assim Suckert viu a Europa. E, se na ilha de Capri, lhe volta as costas, não há nesse ato indiferença. Era como o filho único de um camponês doente e solitário, que abandona o leito paterno para observar a estrada por onde deve vir o socorro. 

Os olhos no mar perscrutam ao longe. Esperam a frota anglo-americana de invasão que iria libertar a Itália e a Europa do terror nazi-fascista.

Na guerra, na invasão, o remédio para a guerra, para as invasões. E Suckert, antigo ideólogo do Partido Fascista Italiano, espera tropas estranhas, vindas de outro continente, para a elas juntar-se na luta contra seus antigos amigos.

Na sua atitude não há, porém, traição ou contradição. As posições que defende são conhecidas; rompeu com o fascismo oito anos antes de Hitler (1889-1945) invadir a Polônia. Quanto à guerra, considera-a não um mal em si mesmo, mas a consequência do impasse, da decadência a que chegara a velha civilização. Acha preferível lutar, destruir, a aceitar passivamente o mundo paralítico da década de 30. Por isso escreveu: 'Saiba-se que prefiro esta Europa destruída à Europa de ontem, e à de há vinte, de há trinta anos. Prefiro que tudo esteja por refazer a ter de aceitar tudo como herança imutável'".

É o livro. Não só A pele, mas também Kaputt. São os seus dois livros sobre os horrores da Segunda Guerra Mundial. Em Kaputt a guerra e em A pele, o pós-guerra.

O cenário de A pele, é a cidade de Nápoles (próxima a ilha de Capri e do Vesúvio). O ano é o de 1943. O fato é a chegada dos exércitos aliados para a libertação da Itália e da Europa. O livro é um constante diálogo entre o escritor e os comandantes do exército dos Estados Unidos. Como recebê-los, como tratá-los. um encontro entre vencidos e vencedores.  Ou dos vencidos à espera dos vencedores, em nome da liberdade. As descrições são muito vivas, fortes e algumas até inspiram asco, o asco das consequências de uma guerra, da ausência de qualquer dignidade na busca pela sobrevivência. Vidas ao sabor dos soldados do exército dos vencedores, inclusive o da prostituição das mulheres e das crianças, em troca de um dólar ou de um pedaço de pão.

Salvar a alma ou salvar a pele? Eis a grande questão. Nos diálogos há o encontro da história, dos valores culturais, da arte com a riqueza de um novo continente. O encontro de Malaparte com os oficiais vencedores se dá num tom de cordialidade, entremeada de muita sutileza e fina ironia. A ingenuidade dos oficiais é exposta. O livro é, inclusive, dedicado aos vencedores Vejamos a dedicatória: "A memória afetuosa do Coronel Henry H. Cumming, da Universidade de Virgínia, e de todos os bravos, os bons, os honestos soldados americanos, meus companheiros de armas de 1943 a 1945, mortos inutilmente pela liberdade da Europa". 

Deixo as frase finais do livro (de doze capítulos e 369 páginas), um dialogo entre o escritor e Jimmy, um alto oficial do exército vencedor:

"Estou cansado de viver entre os mortos - tornou Jimmy. - Sinto-me contente por voltar para casa, por voltar à América, por voltar a viver entre os homens vivos. Porque não vens tu também para a América? és um homem vivo. A América é um país rico e feliz.

- Sei muito bem, Jimmy, que a América é um país rico e feliz. Mas não irei, devo ficar aqui. Não sou um covarde, Jimmy. E depois, também a miséria, a fome, o medo, a esperança são coisas maravilhosas. Mais que a riqueza, mais que a felicidade.

- A Europa é um monte de lixo - disse Jimmy, um pobre país vencido. Vem conosco. A América é um país livre.

- Não posso abandonar os meus mortos, Jimmy. Vocês levam os seus mortos para a América. Todos os dias partem para a América navios carregados de mortos. Morreram ricos e felizes, livres. mas os meus mortos não podem pagar o bilhete para a América, são pobres demais. Nunca chegarão a saber o que é a riqueza, a felicidade, a liberdade. Viveram sempre na escravidão; sofreram sempre a fome e o medo. Serão sempre a fome e o medo. Serão sempre escravos, sofrerão sempre a fome e o medo, mesmo mortos. É o destino que lhes coube, Jimmy. Se soubesses que Cristo jaz entre eles, entre esses mortos, ias abandoná-lo?

Não queres com certeza que eu acredite  - ponderou Jimmy - que também Cristo perdeu a guerra.

- É uma vergonha ganhar a guerra - disse eu em voz baixa".

O livro de biografias nos conta sobre o final de sua vida. Nela permaneceram as contradições que o acompanharam ao longo de toda a vida. Ao visitar a China, tornou-se comunista e ao final converteu-se ao catolicismo. Morre em Roma (19 de julho - 1957) e nos deixa uma espécie de pequeno testamento: "Que os tempos novos sejam tempos de liberdade e de respeito para todos; inclusive para os escritores (os seus livros figuraram no Índice de livros proibidos, o famoso Index) É que só a liberdade e o respeito à cultura poderão salvar a  Itália e a Europa daqueles dias cruéis de que fala Montesquieu: 'Assim, no tempo das fábulas, após inundações e dilúvios, saíram da terra homens armados que se exterminaram'".

"Saíram da terra homens armados que se exterminaram". Uma definição do que é uma guerra.


terça-feira, 11 de março de 2025

MOBY DICK. Herman Melville. 1851.

Um livro muito diferente. Seguramente, muito diferente. Estou falando de  Moby Dick, do escritor dos Estados Unidos, Herman Melville (1819-1891). O livro foi lançado no ano de 1851. Não há contextualizações a fazer. Trata-se de um livro sobre baleias, de caça às baleias, de uma raça, em particular, entre elas, a dos cachalotes. E entre os cachalotes, uma de maneira toda especial, Moby Dick. O livro é um tratado, uma espécie de ensaio sobre baleias, à sua caça e o seu enorme valor comercial, a época. Seu óleo e, mais uma vez, em especial o espermacete, abundante nos cachalotes, pela sua qualidade e valor comercial bem mais elevado. Era usado no fabrico de velas e iluminação. Vejam bem, estamos no ano de 1851.

Moby Dick. Herman Melville. Abril. 1972. Tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos.

Como falei, o livro é uma espécie de ensaio e, por isso mesmo, aprendi muito sobre as baleias. Desde a baleia bíblica, a que engolira o profeta Jonas, até sobre a cidade de Nantucket e Bedford (Massachusetts), os grandes centros pesqueiros de baleia dos Estados Unidos. Aprendi sobre os baleeiros, sobre os navios baleeiros, sobre as diferentes espécies de baleias, sobre o seu peso e tamanho,(trinta metros- até noventa toneladas) sobre a sua valentia e dificuldades de ser abatida, sobre os hábitos dos caçadores, assim como os do enorme mamífero, sobre as infindáveis viagens, sobre os diferentes valores comerciais e assim por diante. As descrições são minuciosas e longas. O livro tem 135 capítulos, estendidos ao longo de 668 páginas. A edição que eu li foi o da coleção Os imortais da literatura universal, da Abril cultural, numa publicação do ano de 1972.

Ao longo da leitura, uma curiosidade me acompanhou. O que levaria um escritor a escrever um tratado sobre baleias. A coleção dos livros é acompanhada de mini biografias e pequenas contextualizações das obras. Creio que na leitura da biografia do autor encontrei segura resposta. Uma vida de dificuldades financeiras o levou aos navios baleeiros. E nesse sentido, o seu livro pode ser até considerado como um diário de bordo.

As suas dificuldades passaram pela falência e morte prematura do pai e de estar entre oito irmãos. Depois de alguns empregos insignificantes, meteu-se pelos mares. Era o ano de 1841 e o navio era o Acushnet: "Era um veleiro de três mastros, com 36 toneladas e 35 metros de comprimento, equipado com oficina mecânica, carpintaria, sala de costura, e repleto de provisões. Tripulavam-no 26 homens comandados pelo capitão, que era o único responsável pela escolha dos locais de caça e autoridade máxima durante todo o tempo de permanência no mar. Logo abaixo do capitão vinham os imediatos, os arpoadores, alguns marujos experientes e, por fim, os aventureiros. Todos eles participavam da caça à baleia, trabalho perigoso e emocionante.

Para realizar sua tarefa, esses homens utilizavam as chalupas, pequenos barcos de madeira leve, com cerca de seis metros de comprimento por dois de largura, um pequeno mastro para vela auxiliar e uma caixa que ia à frente com mais de quinhentos metros de corda presa ao arpão.

A operação era comandada pelos imediatos, que tinham sob suas ordens cinco remadores. A um dos remadores cabia a difícil missão de arpoar a baleia. Como nessa época não existiam ainda dispositivos mecânicos para arpoar, o caçador atirava sua arma com a mão, bem de perto e com toda a força. Podia errar o alvo, e perder a presa. Podia atingir o animal, porém isso não era ainda uma vitória. Muitas vezes, a baleia ferida afundava e se perdia no oceano. Ou saía nadando velozmente e arrastava o pequeno barco. Somente quando ela se cansava é que a chalupa podia aproximar-se; então o imediato a feria mortalmente, atravessando-lhe o corpo seguidas vezes, com uma lança metálica. Depois, ela era arrastada para perto do navio, onde se fazia a extração do óleo - trabalho que chegava a demorar umas cinquenta horas". Vou parar por aqui, senão dou o spoiler do livro. Observem o ano.

Depois continuou navegando, dando aulas e escrevendo, mas não se encontrava. Com a ajuda do sogro, compra uma fazenda e aí encontra o ambiente para escrever a sua grande obra, que ganha, de acordo com a síntese biográfica, um belo sub título Moby Dick ou o homem e seu destino. Vejamos como a obra é apresentada: "Foi ali, entre plantas, árvores e animais, que começou a elaborar Moby Dick: a estória do capitão Acab, comandante do "Pequod", contra Moby Dick, a baleia branca. Acab tinha vivido uma vida de solidão durante quarenta anos (belíssimas reflexões - capítulo CXXXII - A sinfonia). Casara-se muito tarde e em seguida partira para o mar. Seu maior desejo era vingar-se da baleia que lhe arrancara uma perna". (A caça a Moby Dick, ocupa os três capítulos finais do livro). É a narrativa de suas experiências no Acushnet. 

Mas o livro é muito mais. O livreto de biografias explicita o subtítulo que lhe atribuiu: "No entanto, o sentido mais profundo da obra é a eterna procura do homem, o intenso combate contra as forças do mal, o anseio de pureza, e por fim a amarga desilusão: a terra não é nem nunca virá a ser um paraíso". 

O livro foi um fracasso editorial. Ele foi efetivamente descoberto apenas ao longo do século XX, quando se compreenderam as complexas inter-relações filosóficas e religiosas de sua obra. Ainda, do livro de biografias deixo duas críticas. David Herbert Lawrence, apresenta a obstinação de Acab como "o instinto vital em luta contra o intelecto que o mata", enquanto que o renomado escritor e filósofo Albert Camus assim se refere ao escritor e ao livro: "Esse livro incessantemente reescrito, essa infatigável peregrinação através do arquipélago dos sonhos e dos corpos, sobre o oceano 'onde cada vaga é uma alma', essa odisseia sob um céu vazio, faz de Melville o Homero do Pacífico".

Deixo também o registro da extrema erudição do autor, de seu conhecimento da cultura clássica, bem como o da Bíblia, especialmente sobre o Antigo Testamento, donde retira precisas ilustrações. Suas observações religiosas são extremamente pertinentes, especialmente sobre os protestantes dos Estados Unidos. O narrador da epopeia do "Homero do Pacífico" é um marinheiro sobrevivente, como vemos no apêndice do livro.

 

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

O NOME DA ROSA. Umberto Eco.

Continuo com as minhas releituras. O livro da vez foi O nome da rosa, de Umberto Eco, um monstro, no melhor e grandioso sentido da palavra. Terminei a sua primeira leitura no ano de 2011, quando ainda estava em sala de aula. Lembro como era difícil conciliar a leitura com o preparo das aulas. Ainda mais com livros como este, que exige concentração e foco total. Um livro de extrema complexidade e pressuposição de muitos conhecimentos acumulados. Vou fazer algumas contextualizações para estabelecer uma aproximação com a obra, especialmente com a época dos acontecimentos narrados, ou seja, o ano de 1327. O lançamento do livro ocorreu em 1980. Umberto Eco nasceu em Alessandria, na Itália, no ano de 1932 e morreu em Milão no ano de 2016. Sem favor nenhum, Eco foi um dos maiores e mais ativos intelectuais ao longo de sua história intensamente vivida.

O nome da rosa. Umberto Eco. Biblioteca Folha.

O livro que eu li e reli é da Biblioteca Folha (2003), com tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Na orelha da contracapa lemos algo sobre o autor. Considero absolutamente relevante saber que ele era "ensaísta de renome mundial, dedicou-se a temas como a estética, semiótica, filosofia da linguagem, teoria da literatura e da arte e sociologia da cultura", como lemos nesta pequena indicação. Somente alguém com este estofo seria capaz de escrever uma obra de tamanha envergadura. Vamos começar a nossa contextualização pelo ano dos acontecimentos narrados, o ano de 1327.

No campo da filosofia necessariamente devemos apontar para o doutor da Igreja, Tomás de Aquino (1225 - 1274 - Itália) e para o cientista e frade inglês, que lançou as bases para o mundo da ciência moderna, Roger Bacon (1220 - 1292). Ambos estão sempre presentes na obra de Eco. É a presença de Aristóteles chegando com muita força na cultura ocidental. Eles serão a força norteadora de Guilherme de Baskerville, o frade franciscano que é o personagem protagonista da obra.

No campo religioso - político vamos encontrar as divisões dentro da Igreja. É o tempo dos papados em Roma e do cisma de Avignon (1309 - 1377) e com intensas disputas e alianças com o poder temporal. E este poder temporal começa a se impor sobre o poder espiritual, de ordem divina dos imperadores e dos papas. É também o tempo de constantes inquisições e de acusações de heresia e de disputas entre as ordens religiosas, que surgiram ao longo da Idade Média e se intensificaram muito neste período histórico retratado. Na obra estão muito presentes os franciscanos, fundados por Francisco de Assis no ano de 1209 e os dominicanos, fundados por S. Domingos de Gusmão em 1216. Os monges oscilavam entre a VERDADE e a heresia, entre o céu e o inferno, entre a santidade e a excomunhão.

Creio que um outro dado, não presente no livro, mas que ajuda a esclarecer as lutas desse período é examinar A Divina Comédia (escrita entre os anos 1304 e 1321), de Dante Alighieri (1265 - 1321). Na época a grande luta se travava entre os guelfos e os gibelinos. Os guelfos eram partidários do papa, enquanto os gibelinos apoiavam o imperador, na época do Sacro Império Romano-Germânico. Dante, partidário dos gibelinos, não hesitava em colocar seus adversários nas piores camadas do inferno. São tempos de afirmação do poder temporal.

Vamos ao romance. Recorro mais uma vez ao próprio livro, orelha e contracapa. Vamos à orelha: "Ficção de estreia de um dos mais respeitados teóricos da semiótica, O nome da rosa transformou-se em prodígio editorial logo após seu lançamento em 1980.

Tamanho sucesso não parecia provável para um romance cuja trama se desenrola em um mosteiro italiano na última semana de novembro de 1327. Ali, em meio a intensos debates religiosos, o frade franciscano inglês Guilherme de Baskerville e seu jovem auxiliar, Adso, envolvem-se na investigação das insólitas mortes de sete monges, em sete dias e sete noites. Os crimes se irradiam a partir da biblioteca do mosteiro - a maior biblioteca do mundo cristão, cuja riqueza ajuda a explicar o título do romance: 'o nome da rosa', era uma expressão usada na Idade Média para denotar o infinito poder das palavras.

Narrado com a astúcia e graça de quem apreciou (e explicou) como poucos as artes do romance policial, O nome da rosa encena discussões de grandes temas da filosofia europeia, num contexto que faz desses debates um ingrediente a mais da ficção. O livro de Eco é ainda uma defesa da comédia - a expressão do homem livre, capaz de resistir com ironia ao peso de homens e livros". Em torno de um livro de Aristóteles, Poética, (sobre riso e comédia), gira todo o enredo do romance. Aristóteles, como vimos, é o filósofo em ascensão.

Já na contracapa temos mais informações: "Em novembro de 1327, Guilherme de Baskerville, um frade franciscano inglês muito parecido com Sean Connery e com Sherlock Holmes, chega a um mosteiro italiano que contém a maior biblioteca do mundo cristão. É acompanhado pelo jovem Adso, que, por sua vez, é parecido com o dr. Watson e com Sancho Pança. Adso, anos mais tarde, narra a história.

Guilherme tem a missão complicada de permitir um encontro, no mosteiro, entre uma delegação do papa e o frade teólogo Michele de Cesena, para quem Cristo e seus apóstolos não tinham bens de espécie alguma, cabendo aos cristãos (a começar pela Igreja) parecer-se com eles. Esta proposta era francamente mal vista.

No meio de um debate perigoso, em que as ideias custam excomungações e suplícios variados, eis que pipocam cadáveres de monges assassinados.

Fiquem de olho em Jorge de Burgos, o bibliotecário espanhol e cego, que seria muito parecido com nosso quase contemporâneo Jorge Luís Borges, se este, no fim de sua vida, tivesse se tornado dono da biblioteca de Babilônia.

Muitíssimos anos depois, Umberto Eco, um acadêmico italiano respeitado por seus sérios tratados de semiologia, estética e filosofia medieval, pensa, provavelmente, como Guilherme. Ou seja, pensa que o mundo é povoado por signos que deveriam nos orientar, mas, de fato, nos desorientam; que a pretensão das verdades absolutas é irrisória e, sobretudo, que o conhecimento sem alegria é uma idiotice. Dessa estranha coincidência entre o espírito de Guilherme e o de Eco nasce O Nome da Rosa, o romance moderno que conta a história da razão enlouquecida (de tanto se levar a sério) e a aventura do frade que saiu à procura do bom humor perdido". Este texto da contracapa tem a assinatura do colunista da Folha, Contardo Calligaris.

O romance é longo. São 479 páginas. Os sete assassinatos se transformam nos sete dias que formam as sete partes do livro. Ele tem o seu formato de um romance policial, que vem num crescendo de  suspense extraordinário, entremeado de profundos debates filosófico religiosos. Ele termina numa ecpirose. Da parte final em tomei algo que considero fundamental dentro da obra:

"'Era a maior biblioteca da cristandade', disse Guilherme. 'Agora', acrescentou, 'o anticristo está realmente próximo porque nenhuma sabedoria vai barrá-lo mais. Por outro lado vimos seu vulto esta noite'.

'O vulto de quem?' perguntei aturdido.

'De Jorge, digo. Naquele rosto devastado pelo ódio à filosofia, vi pela primeira vez o retrato do Anticristo, que não vem da tribo de Judas, como querem seus anunciadores, nem de um país distante. O Anticristo pode nascer da própria piedade, do excessivo amor a Deus ou da verdade, como o herege nasce do santo e o endemoninhado do vidente. Teme, Adso, os profetas e os que estão dispostos a morrer pela verdade, pois de hábito levam à morte muitíssimos consigo, frequentemente antes de si, às vezes em seu lugar. Jorge cumpriu uma obra diabólica porque amava tão lubricamente a sua verdade, a ponto de ousar tudo para destruir a mentira. Jorge temia o segundo livro de Aristóteles porque este talvez ensinasse realmente a defrontar o rosto de toda verdade, a fim de que não nos tornássemos escravos de nossos fantasmas. Talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir da verdade, fazer rir a verdade, porque a única verdade é aprendermos a nos libertar da paixão insana pela verdade'". Página 470. 

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

GERMINAL. EMILE ZOLA. 1885.

Meu tempo de releituras! A lembrança de uma leitura, entre as que mais impacto me causaram, me levou de volta para Germinal, a grande obra de Emile Zola. Seguramente é uma das obras mais importantes de todos os tempos. Como não é fácil fazer a resenha, começo falando algo do autor e de sua obra. Vamos aos dados de sua vida. Ele nasce no ano de 1840 e morre em 1902, asfixiado pelo gás do aquecimento. Morte estúpida. O livro é do ano de 1885. Mas vamos aos acontecimentos, aos fatos históricos do entorno de sua vida.

Germinal. Emile Zola. Abril. 1972.

Mais longinquamente vamos ao ano de 1789, o ano da Revolução burguesa na França, do fim da monarquia e dos ensaios da instauração da República. Tempos de Revolução, com as suas permanentes agitações. Tempos de interpretação de um novo mundo que surgia. Tempos de industrialização e urbanização. Tempos de proletariado e de burguesia. Tempos de Darwin (1809-1882), de Marx (1818-1883) e de Bakunin (1814-1876). Tempos de organização da luta dos trabalhadores, da fundação da Primeira Internacional (Londres - 1864). Tempos de Guerra, como a Franco- prussiana (1870-1871) e tempos de abalo das estruturas tradicionais de poder, como a famosa Comuna de Paris (18 de março a 28 de maio de 1871). E na literatura, tempos de naturalismo e de realismo.

Eram, sobretudo, tempos de esperança. Um novo calendário, instituído após a Queda da Bastilha, substituiu as datas cristãs por fenômenos da natureza. O início da primavera fora batizado com o nome de GERMINAL. Este seria o tempo das sementes germinarem, evoluírem, florirem e gerarem frutos, ou melhor, gerarem os novos tempos. Tempos de evolução, de razão, de ciência e de progresso. Tempos em que o novo insistia em se afirmar. Eram tempos em que estudos e lutas deveriam estimular as condições para a germinação e frutificação. 

A edição de Germinal que eu li foi a da Editora Abril - Clássicos da Literatura Universal, do ano de 1972, com tradução de Francisco Bittencourt. Esta coleção é acompanhada por mini biografias dos autores e contextualizações das obras. Na contextualização de Germinal, obra que expõe a situação dos trabalhadores das minas de carvão, vemos que Zola foi viver a situação desses mineradores. Vejamos essa descrição:

"Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar uma vagoneta por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles tem de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve dos operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas". Eis a obra.

Eu ainda acrescentaria que é também uma análise das crises do capitalismo, as crises provocadas pelo seu caráter autofágico de acumulação. Vide a pequena empresa de Deneulin, sufocada e engolida pela concorrência. Da mesma forma também mostra a podridão moral dos personagens burgueses, pequenos (Maigrat) e grandes (Hennebeau). E, cenas de luta de classes e de confusões teóricas de sustentação dessas lutas. Há os marxistas, os anarquistas e os conciliadores (Etiénne, Suvarin e Rasseneur). O clima das tentativas do imperativo do final do Manifesto Comunista - Proletários do mundo inteiro - uni-vos. A Organização Internacional dos Trabalhadores. Deixo aqui uma resenha dessas diferentes tentativas. A Primeira delas (1864) está muito presente na obra. (Agrupei num único post as quatro tentativas):

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/02/proletarios-de-todos-os-paises-uni-vos.html

Chamo atenção, ainda, para os principais personagens. O livro é a saga da família Maheu, avô (Boa-Morte), o pai, a mãe, sete filhos e um hóspede, que será o personagem principal, Etiénne. Uma família mutilada pela fome, pelo sofrimento e pela morte. São mais de cinquenta anos de mineração. Desta família também merece destaque a pequena Catherine, dividida entre seus princípios morais, amores pré-adolescentes e a violência da fome e de homem selvagem. Etiénne vive o drama da liderança, entre aclamações e cusparadas na cara. 

A narrativa de todo este sofrimento dos trabalhadores é longa e doída. Provoca o envolvimento do leitor. Diria que é um livro de formação de consciência, um livro que certamente integraria a lista de livros proibidos, a serem queimados, nessa nova onda mundial de ascensão da extrema direita. O livro está divido em sete partes, cada uma com cinco ou seis tópicos, num crescendo de agradável aprisionamento do leitor à sua leitura. Ao todo são 537 páginas.

Ao final da obra encontramos Etiénne a caminho de Paris, refletindo sobre a longa greve de dois meses e meio de duração. Teria valido a pena, tanta violência e sofrimento? Eis algumas de suas reflexões: "Sem dúvida tinham sido derrotados, pois haviam deixado dinheiro e mortos, mas Paris não esqueceria os tiros da Voreux (a mina), o sangue do império também correria por aquela ferida incurável. E, se a crise industrial chegasse ao fim, se as fábricas reabrissem uma a uma, não tinha importância, o estado de guerra continuaria, a paz agora era impossível. Os mineiros já sabiam quantos eram, já conheciam sua força, tinham sacudido com seu grito de justiça os operários da França inteira. A derrota deles não trazia segurança para ninguém [...]. Eles compreendiam que a revolução renasceria sem descanso, talvez mesmo amanhã, com a greve geral, a união de todos os trabalhadores resultando em caixas de socorros que os levariam a aguentar por muitos meses comendo pão. Desta última vez, fora um empurrão dado na sociedade em ruínas, e tinham sentido perfeitamente o chão fugindo sob seus pés, sentiam formarem-se novas convulsões, sempre outras, até que esse velho edifício abalado desmoronasse, tragado como a Voreaux, sorvido pelo abismo".

E, numa referência ao título, conclui: "Do flanco nutriz brotava a vida, os rebentos desabrochavam em folhas verdes, os campos estremeciam com o brotar da relva. Por todos os lados as sementes cresciam, alongavam-se, furavam a planície, em seu caminho para o calor e a luz. Um transbordamento de seiva escorria sussurrante, o ruído dos germes expandia-se num grande beijo. E ainda, cada vez mais distintamente, como se estivessem mais próximos da superfície, os companheiros cavavam. Aos raios chamejantes do astro rei, naquela manhã de juventude, era daquele rumor que o campo estava cheio. Homens brotavam, um exército negro, vingador, que germinava lentamente nos sulcos da terra, crescendo para as colheitas do século futuro, cuja germinação não tardaria em fazer rebentar a terra". Páginas 535 a 537.

O mundo ainda ficaria muito agradecido ao grande escritor por sua intervenção no caso Dreyfus, com o seu famoso J'accuse, de 1898. Foi o personagem central de reparação de uma grave injustiça.

Tenho em casa também a coleção - Grandes Livros no Cinema -. Foi lançado pela Folha de S.Paulo. Entre eles está Germinal, com a fantástica atuação de Gérard Depardieu. Na contracapa do livreto da coleção lemos o que segue:

"As péssimas condições de vida e de trabalho de mineiros exploradores de carvão numa vila na França no século 19 culmina em revolta, massacre e morte quando um casal lidera uma greve reivindicando tratamento mais humano. Com 'Germinal', o escritor Emile Zola expôs, na linguagem crua e dura do naturalismo, a injustiça social e defendeu o espírito de revolta num momento em que os lemas revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade haviam voltado a não ser mais que uma utopia do passado. Claude Berri filmou o romance em 1993 como uma superprodução valorizada pela presença de Gérard Depardieu à frente do elenco de grandes intérpretes do cinema francês". 151 minutos de duração.