terça-feira, 28 de março de 2023

Como funciona o fascismo. A política do "NÓS" e "ELES". Jason Stanley.

A leitura dos livros Como enfrentar um ditador - a luta pelo nosso futuro, da Nobel da Paz de 2021, Maria Ressa e A máquina do ódio - notas de uma repórter sobre fake news e violência digital, de Patrícia Campos Mello e uma série de estudos sobre o fascismo que estamos desenvolvendo em um círculo de leituras, me levou à leitura de Como funciona o fascismo - a política do "NÓS" e "ELES", do professor da Universidade de Yale, Jason Stanley. Trata-se de um livro referência para os estudos sobre este nebuloso tema. O livro teve a sua primeira edição em 2018. A edição que tenho em mãos é da L&PM, do ano de 2022. 8ª edição.

Como funciona o fascismo. A política do "NÓS" e "ELES".  Jason Stanley. L&PM.

Na introdução, o autor apresenta o seu envolvimento com o tema. Seus avós foram fugitivos da Alemanha nazista. Sua avó escreveu um livro em que relata as desventuras dessa fuga - para a vida - em The Unforgotten. O autor tem o seu encontro com o tema, um encontro mais próximo, com a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos no ano de 2016. O livro foi escrito num misto de dor e advertência, possivelmente mais advertência do que dor. É que nos dias de hoje, as práticas fascistas estão sendo naturalizadas por inúmeros governantes, mundo afora. Hannah Arendt tem muita razão quando escreveu sobre a banalidade do mal. Ele integra as prática burocráticas do cotidiano.

O fato que mais me chamou a atenção no decorrer da leitura é o quanto o fascismo está impregnado no cotidiano das pessoas, o quanto ele está embutido nas mais diferentes instituições em que estamos envolvidos e o quanto, por inúmeras vezes, ele está revestido com roupagens nobres e virtuosas, se apresentando como princípios de moralidade a serem assimilados e seguidos. As instituições envolvidas no processo de socialização contém inúmeros germens que tendem à aderência a tão despropositadas ideias, movedoras de comportamentos. O livro de Stanley nos coloca diante do espelho que nos lança a um profundo olhar sobre nós mesmos.

Depois da apresentação, que também nos remete ao significado próprio do termo fascismo, ligando-o às ideias e práticas do ditador italiano Benito Mussolini e a sua ascensão ao governo italiano ao longo da década de 1920, ideias que logo tiveram inúmeros seguidores e aprofundamentos em seus terríveis e temíveis métodos em inúmeros outros países. O livro nos dá a possibilidade de ver detalhadamente a radiografia de seu funcionamento, com a apresentação de dez conceitos onipresentes em todos os esboços de suas práticas. Eis os dez conceitos chave, as suas ideias indutoras e condutoras:

1. O passado mítico; 2. Propaganda; 3. Anti-intelectualismo; 4. Irrealidade; 5. Hierarquia; 6. Vitimização; 7. Lei e ordem; 8. Ansiedade sexual; 9. Sodoma e Gomorra; 10. Arbeit macht frei. Vou tentar apresentar um pequeno esboço de cada um desses conceitos. Então vamos, conceito por conceito:

1. O passado mítico está profundamente ligado ao nacionalismo, aos feitos históricos dos heróis fundadores. Essa concepção remete ao saudosismo, ao fazer de novo, ao culto aos valores e heróis do passado. América First ou o lema de Trump - Make America Great Again. Este passado glorioso exige a necessária "pureza", que fundamentou a "solução final" do nazismo e a política anti -imigrantes, mundo afora, nos dias de hoje. Remete ainda ao patriarcalismo, ao Pater famílias, ao pai provedor e ao Pai condutor - Führer - de todas as famílias, da grande Nação. 

2. A propaganda é a grande criadora de verdades. É ela a criadora de metas virtuosas. É ela a criadora de mitos e de demônios. Por ela se cria o "NÓS" e o "ELES" e os coloca em confronto. A luta do bem contra o mal. Por ela são criados os corruptos e os incorruptíveis. Será ela o grande instrumento que, pela emoção e não pela razão, impulsionará as massas a seguirem o seu Führer. A repetição da verdade produzida à exaustão será o grande instrumento para o convencimento. 

3. O anti-intelectualismo será a grande marca da desvalorização da educação e da cultura. É o ódio a todo o ato criativo e crítico. A adesão a valores se dará pela emoção e ao culto da tradição e jamais pela razão. Mais uma vez, o culto saudosista aos valores do passado. A Universidade precisa ser contida, assim como os seus professores. Lá se promovem estudos de raça e gênero, que podem quebrar as estruturas do patriarcalismo e da pureza racial. Além disso, ali se desenvolvem as subversivas teorias do "marxismo cultural". A "verdadeira" universidade deveria se dedicar a desenvolver habilidades, deveria estar voltada para a vontade e não para o intelecto, para o desenvolvimento de slogans, guias das massas. Por ela deveriam ser exaltados os valores cívico-patrióticos do primeiro item. Aqui eu devo intervir para sugerir uma leitura, um dos livros mais marcantes que eu já li: Antiintelectualismo nos Estados Unidos, de Richard Hofstadter, uma edição da Paz e Terra de 1967.

4. A irrealidade é a criação da verdade desejada. Ela será criada pela destruição ou controle dos centros de informação e pela afirmação da voz e da verdade desejada. Medo, ódio e intimidação serão práticas que ajudarão no alcance desse intento. Seria o fim da interrogação e da argumentação. A irrealidade se afirmará com as famosas "teorias da conspiração". Stanley faz uma impressionante análise das influências do livro Os protocolos dos sábios de Sião na afirmação das teorias do antijudaísmo. Apenas o inventado será tido como verdadeiro, como referência. Força para o emocional, para o mítico e não para o racional, intelectual e científico.

5. A hierarquia é para o fascista um valor supremo. Para ele a igualdade é um atentado contra a natureza. Seria igualar o que Deus criou desigual (Vejam aí também o papel da religião). Pela hierarquia é que criamos as separações, as distinções, as desigualdades. Ela está onipresente. É o grande instrumento do exercício do poder. Me permitam uma nova intervenção. Em minhas aulas sempre usei quatro palavras quando eu falava desses temas, como alienação, ideologia, dominação... Ei-las: divisão, hierarquia, naturalização e universalização. Um exemplo. Família. Divisão. Pai, mãe, filhos. Hierarquia. O Pater, o pai provedor, a mãe...., os filhos.... (nenhuma igualdade). Naturalização. É um princípio da própria natureza. É uma verdade natural, que não admite contestação. Universalização. Sempre foi e sempre será assim. É uma verdade atemporal, universal. Mais uma intervenção. A etimologia da palavra hierarquia. Do grego: hieros e arquia. Enquanto hieros nos remete ao sagrado, arquia nos remete a poder, a governo, à ordem. Um poder, uma ordem sagrada.

6. Vitimização. Os brancos e os cristãos representam a civilização. São os portadores do mérito. Eles constantemente tem que ceder na ordem hierárquica, ao "eles", não brancos e não cristãos, ao outro, ao diferente. Tem que ceder direitos, tem que pagar mais impostos, para que "outros" a eles sejam igualados. Vítimas do outro, do desigual, do estrangeiro, do imigrante, do refugiado, do inadaptado e inadaptável, que tantos sofrimentos causam aos que estão no topo da hierarquia, da sagrada ordem. 

7. Lei e ordem. É a construção de um discurso que divide entre os que cumprem e os que não cumprem a lei e a ordem. E... morte e reclusão aos que não a cumprem, mesmo quando todas as oportunidades lhes sejam negadas, mesmo que haja leis que necessariamente levam à exclusão social propositada, como o foi, a abolição da escravidão no Brasil. É um discurso que confere poder e que leva às politicas de encarceramento, em vez de políticas sociais inclusivas e afirmativas. A lei e a ordem também geram as pré-condenações ao "Eles", os indesejados e estigmatizados como criminosos.

8. Ansiedade sexual. A fragilidade sexual seria um atentado ao PAI da Nação, portanto, ao patriarcalismo. A força sexual, o mito do, me permitam, imbrochável, é uma ideia força. É o Pai provedor, o Pai que garante a pureza na sucessão da raça, que não fraqueja, que, em suma, permite a continuidade da pureza das raízes fundadoras e que deram identidade à Nação. Que livram os "puros" do estupro dos 'impuros", dos miscigenadores de raças.

9. Sodoma e Gomorra. É nas cidades, no cosmopolitismo, que reside a perversão. É no campo que reside a pureza primitiva e fundadora, do respeito às hierarquias e dos valores fundacionais. É na cidade que vivem os parasitas sustentados pelo campo. É no campo que moram as pessoas auto suficientes, que não precisam, que não dependem de subvenções do Estado. É no campo que vive a família tradicional, em que os papeis são bem definidos. Enquanto que a cidade é a fonte e o local das contaminações, perversões e digressões. É no campo que, com o esforço de trabalho, se provê a auto suficiência, a não dependência.

10. Arbeit macht frei. O trabalho duro encerra em si todas as virtudes. É por ele que você se tornará auto suficiente, responsável e cumpridor da lei e da ordem. Pelo trabalho duro, inclusive, será possível a própria regeneração da pessoa, como indicava a placa na entrada dos campos de concentração: Arbeit macht frei. Será também o trabalho importante divisor entre o "Nós" e o "Eles". Os "trabalhadores" e os "vagabundos", os parasitas, os dependentes. O trabalho leva à riqueza, e esta também é apresentada como um grande valor espiritual. Hitler pregava a organização do Estado, à semelhança da organização da empresa, sempre sob a direção de um líder. O trabalhador que trabalha duro também não necessita de sindicatos, instrumentos da massa e não do indivíduo.

No epílogo, Stanley nos lança uma advertência sobre os avanços do fascismo em nosso tempo presente. O maior perigo reside no fato da normalização. Ele já não nos choca, ele já não assusta. Convivemos com ele e a ele fazemos concessões diárias, sempre com justificativas, que sempre são encontradas com facilidade. O mal se torna normal, se torna banal. Não precisamos ser protagonistas para ajudar o fascismo a prosperar, basta não combatê-lo, ao nos adaptar aos seus trâmites burocráticos e não considerá-lo tão perverso como, de fato, ele o é. E o quanto ele está próximo de nós, e, inclusive, introjetado em nós.

"A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la". Adorno. Educação após Auschwitz em Educação e emancipação. Outro interessante estudo sobre o fascismo, de fácil compreensão, por estar didaticamente exposto em tópicos, é o de Umberto Eco, em seu pequeno livro O fascismo eterno. Veja e estabeleça as comparações ou as semelhanças:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/03/fascismo-eterno-umberto-eco.html



terça-feira, 21 de março de 2023

A máquina do ódio. Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. Patrícia Campos Mello.

O livro A máquina do ódio - Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital, da jornalista Patrícia Campos Mello chegou em minhas mãos pela via do programa Roda Viva da TV Cultura de São Paulo, do dia 30 de janeiro de 2023. A entrevistada do dia era Maria Ressa, a jornalista filipina- estadunidense, Nobel da Paz de 2021, por sua defesa da liberdade de imprensa, prêmio dividido com o jornalista russo Dmitry Muratóv, pela mesma causa. Maria Ressa é também autora do livro Como enfrentar um ditador - A luta pelo nosso futuro. O ditador em questão é Rodrigo Duterte, das Filipinas.

A máquina do ódio. Patrícia Campos Mello. Companhia das Letras. 2020.

Patrícia Campos Mello participou do programa, na qualidade de entrevistadora. Ela também prefaciou a edição brasileira do livro de Maria Ressa. Deixo aqui a resenha desse livro.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/03/como-enfrentar-um-ditador-maria-ressa.html

Patrícia Campos Mello é uma jornalista de renome que já trabalhou em quase todos os grandes meios de comunicação brasileiros, se notabilizando por coberturas internacionais. Hoje trabalha na Folha de S.Paulo e se tornou famosa ao longo do governo de Bolsonaro por combater suas mentiras com a verdade dos fatos. Por suas denúncias, ainda na campanha eleitoral de 2018, do uso de disparos em massa, pela via da mídia digital de fake news em favor da campanha de Bolsonaro, este lhe devotou um ódio profundo e passou a difamá-la, desmerecendo-a como jornalista e desrespeitado a sua condição de mulher, atingindo a sua reputação moral e pessoal. Coisa de cafajeste. O assassinato de reputações foi amplamente repercutida pelos filhos de Bolsonaro e por seus seguidores. Patrícia foi acusada sem nenhum escrúpulo por ter praticado atos inimagináveis.

Patrícia não se calou e muito menos se retirou do campo de batalha. Ela continuou o seu trabalho jornalístico e lançou o livro como denúncia e alerta por todos os perigos representados por Bolsonaro e pelo bolsonarismo. Além disso ela coloca esse fenômeno dentro do universo mundial, representado pelo avanço da extrema direita fascista, pelo uso do método da multiplicação das fake news e da violência digital, como lemos no subtítulo de seu livro: Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. É sob esse aspecto que o seu livro ganha em importância e se alinha com o da sua colega de profissão, Maria Ressa. 

O seu livro foi editado pela Companhia das Letras, no ano de 2020. Ao longo de suas 294 páginas, encontramos uma introdução, quatro capítulos, uma conclusão, um epílogo, agradecimentos, notas e uma mini biografia da autora.

Na introdução, que tem por título Como as redes sociais me transformaram em uma "jornalistinha" comunista, ela relata o ódio que lhe foi devotado a partir das matérias que ela escreveu para a Folha de S.Paulo, denunciando o uso de fake news na campanha do então candidato Jair Bolsonaro. O corpo do livro tem quatro capítulos, com os seguintes títulos: 1. A eleição do WhatsApp no Brasil; 2. Assassinato de reputações, uma nova forma de censura; 3. Fatos alternativos e a ascensão de populistas no mundo; 4. Bolsonaro e o manual de Victor Orbán (Hungria) para acabar com a mídia crítica. A sua conclusão também mereceu um título: Será que uma pandemia pode salvar o jornalismo. Ele é uma referência à divulgação de fatos, vejam bem, de fatos e não de fatos alternativos, como os examinados no terceiro capítulo. Por fatos alternativos, leia-se, fatos do interesse de seus propagadores. Creio que conhecemos bem essa realidade.

Na contracapa temos duas apresentações de seu livro. A primeira é do renomado professor Jason Stanley, autor do livro Como funciona o fascismo - A política do "Nós e Eles". Vejamos: "Graças ao trabalho desbravador  de jornalistas como Patrícia Campos Mello, nós pudemos descobrir e entender como a internet contribuiu para propagar movimentos contrários à democracia. Se você quer  compreender os desafios atuais para a democracia no mundo, precisa ler este livro". 

A segunda apresentação é da jornalista Míriam Leitão: "Para entender a natureza dos riscos que ameaçam a democracia brasileira hoje, é preciso seguir o rastro da conspiração digital que simula movimentos de apoio popular e fabrica ódio contra pessoas e instituições. Este livro desvenda esse mundo das sombras com um texto envolvente e esclarecedor". Outra apresentação do livro está nas orelhas do mesmo:

"Dias antes do segundo turno das eleições de 2018, Patrícia Campos Mello publicou a primeira de uma série de reportagens sobre o financiamento de disparos em massa no WhatsApp e em redes de disseminação de notícias falsas, na maior parte das vezes em benefício do então candidato Jair Bolsonaro. Depois disso, a repórter se tornou alvo de uma violenta campanha de difamação e intimidação estimulada pelo chamado "gabinete do ódio" e suas milícias digitais.

Em A máquina do ódio, a autora discute como as redes sociais vêm sendo manipuladas por líderes populistas e em que medida as campanhas de difamação funcionam qual uma censura, agora terceirizada para exércitos de trolls patrióticos repercutidos por robots no Twitter, no Facebook, no Instagram e no WhatsApp, que investem preferencialmente contra jornalistas mulheres. Os bastidores de reportagens que produziu e os ataques de que foi vítima servem de moldura para um quadro mais amplo sobre a liberdade de imprensa no Brasil e no mundo.

Patrícia Campos Mello acompanhou a utilização crescente das redes sociais nas eleições internacionais que cobriu: nos Estados Unidos, em 2008, 2012 e 2016; na Índia, em 2014 e 2019. À experiência de observadora do avanço dos tecnopopulistas e seu 'manual para acabar com a mídia crítica' somou-se a de protagonista involuntária no front de uma guerra contra a verdade.

Relato envolvente de um dos capítulos mais turbulentos de nossa história recente, A máquina do ódio é também um livro em defesa da informação. Em meio à ascensão de governos exímios em falsear os acontecimentos e no contexto da terrível pandemia causada pelo Coronavírus, a imprensa tem uma oportunidade única de renascer. Se ela não resistir aos governos populistas, à manipulação das redes sociais e à recessão econômica, vão sobrar somente os blogs e sites partidários que apenas corroboram crenças, sem nenhum compromisso com a verdade dos fatos".

Um livro imprescindível, especialmente para jornalistas, políticos, professores da área de política e para todos os que prezam o valor da democracia. É como lemos no subtítulo do livro de Maria Ressa: A LUTA PELO NOSSO FUTURO. Eu acrescento, de nossos filhos e netos.


segunda-feira, 13 de março de 2023

Como enfrentar um ditador. Maria Ressa. Nobel da Paz. 2021.

Entrei em contato com Maria Ressa, pela primeira vez, através do programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, do dia 30 de janeiro de 2023. Inexplicavelmente me passara despercebido o fato de ela ter sido agraciada com o Prêmio Nobel da Paz do ano de 2021. O prêmio foi por sua luta incansável em favor da liberdade de imprensa, única forma de preservar as democracia no mundo, segundo ela, ante a ameaça da ascensão fascista, representada pelas novas tecnologias, que permitiram o avanço das redes sociais. Essas, pela possibilidade de sua manipulação pela via da multiplicação algorítmica, se constituem hoje na maior ameaça aos regimes democráticos, nunca tão ameaçados como no presente momento da história da humanidade. O prêmio foi dividido com outro jornalista, o russo Dmitry Muratov. Por óbvio, Maria Ressa também exerce a profissão de jornalista.

Como enfrentar um ditador. Maria Ressa. Companhia das Letras. 2022.

O programa me levou à compra do livro. Ele relata sua vida e, especialmente, sua luta e compromisso jornalístico com os fatos, no combate à mentira que, cada vez mais ganha espaços, em função de interesses econômicos, que se aliam aos interesses políticos mais escusos, que corroem as democracias. O seu livro se apresenta com o sugestivo título que enfatiza essa realidade. Como enfrentar um ditador - a luta pelo nosso futuro. O ditador em referência é Rodrigo Duterte, das Filpinas, país tristemente conhecido por um ditador terrível e que figura na lista do Guiness, como o campeão em corrupção, Ferdinand Marcos. Quem não lembra do casal Ferdinand e Imelda Marcos, ela mundialmente conhecida por sua coleção de mais de mil sapatos. Pois é. Depois de Rodrigo Duterte, a família Marcos voltou ao poder através do filho Bongbong Marcos, tendo como vice, Sara Duterte Caprio, filha de Rodrigo Duterte. Questões em família. Simples assim. Triste realidade. Pobre democracia.

 Mas o livro de Maria Ressa vai para muito além de sua terra natal. Assim como ela, que dividiu seus anos de formação entre as Filipinas e os Estados Unidos e, por suas atividades profissionais, se tornou uma cidadã do mundo, assim também seu livro vai para muito além, digamos, de suas duas pátrias, Ele analisa as democracias em risco do mundo inteiro. Esta é também a dimensão do seu reconhecimento, pelo título recebido em 2021, de Prêmio Nobel da Paz. Então, a grande pergunta que nos cabe fazer é a de como essa realidade concreta da ameaça às democracias se tronou possível, simultaneamente e em âmbito mundial. Esse é o teor do instigante livro de Maria Ressa. 

Vou fazer uma pequena apresentação da estruturação do livro para depois deixar os leitores com os indicativos do próprio livro em suas orelhas e contracapa. O livro de 367 páginas, tem prefácio de Amal Clooney, uma ativista dos Direitos Humanos, um prefácio à edição brasileira, assinado por Patrícia Campos Mello, autora do livro A máquina do ódio - notas de uma repórter sobre fake news e violência digital e uma introdução da própria autora.

O corpo do livro está dividido em três partes: Parte I. A volta para casa: o poder, a imprensa e as Filipinas, 1963-2004. Nesta primeira parte temos os seguintes capítulos: 1. A regra de ouro - Escolha aprender; 2. O código de honra - Trace a linha; 3. A velocidade da confiança - Seja vulnerável; 4. A missão do jornalismo; - Sejamos honestos.

Parte II. A ascensão do Facebook, o Rappler (do qual ela é cofundadora) e o buraco negro da Internet, 2005-2017. Nesta parte encontramos os seguintes capítulos: 5. Os efeitos da rede - Passo a passo até o ponto da virada; 6. Criando ondas de mudança - Forme uma equipe; 7. Como os amigos dos amigos derrubaram a democracia - Pense devagar, não pense rápido; 8. Como o estado de direito desmoronou por dentro - Calar é ser cúmplice.

Parte III. Medidas enérgicas: prisões, eleições e a luta pelo nosso futuro, 2018- presente. Nesta parte temos mais os seguintes capítulos: 9. Sobrevivendo a milhares de feridas - Acredite no bem; 10. Não vire um monstro para lutar contra um monstro - Aceite seu medo; 11. Defenda a linha - O que não mata fortalece; 12. Por que o fascismo está vencendo - Colaboração. Colaboração. Colaboração. Epílogo, agradecimentos e notas complementam o livro.

Na contracapa lemos uma frase do livro, em destaque: "O mundo que conhecíamos foi dizimado. Agora cabe a nós decidir o que queremos". E logo a seguir, uma pequena resenha: "Vencedora do Nobel da Paz em 2021 por sua luta pelo direito à liberdade de expressão, Maria Ressa  é uma das mais renomadas jornalistas do século XXI. Em 2012, fundou o Rappler, um portal de notícias independente que logo virou alvo do Estado filipino e fez de Ressa inimiga do homem mais poderoso de seu país: Duterte, o então presidente. Mas  ele não é o seu único adversário.

Nestas memórias, Maria Ressa compartilha sua trajetória contra a opressão e a censura e tenta mapear o fenômeno da desinformação que assola o mundo todo. Da invasão do Capitólio dos Estados Unidos ao Brexit da Grã-Bretanha, passando pela influência do facebook nas eleições, Ressa revela como grandes empresas de comunicação incentivaram e disseminaram um vírus de ódio que infecta toda a sociedade, em uma pandemia de raiva e medo.

Contando nas trincheiras da guerra digital, Como enfrentar um ditador é o grito urgente para que lutemos por nossa liberdade - antes que seja tarde demais. O que você está disposto a sacrificar em prol da verdade?". Já na orelha, lemos, primeiramente em destaque: "Fake news e manipulação política assolam o mundo todo. Combatê-las é uma luta árdua, e é necessário coragem. Da vencedora do Nobel da Paz, Como enfrentar um ditador é um relato impressionante sobre os muitos golpes que os Estados democráticos têm sofrido nos últimos anos". Depois segue:

"Por décadas, Maria Ressa desafiou a corrupção em seu país, as Filipinas, na passagem de um Estado autoritário para uma democracia. Ela transformou a cobertura de notícias em sua região, tanto como correspondente da CNN na Ásia quanto como fundadora do Rappler, um portal que rapidamente se popularizou entre os filipinos - o povo que, dentre todos os outros, mais usa a internet.

As Filipinas são o marco zero dos efeitos tenebrosos que as redes sociais podem produzir em uma nação. Nesse âmbito, tudo o que ocorre lá acaba repercutindo no resto do mundo. Um exemplo são as fazendas de cliques, que se tornaram famosas no Ocidente durante as eleições de Donald Trump, nos Estados Unidos, e de Jair Bolsonaro, no Brasil, mas que anos antes já eram utilizadas por outro líder da extrema direita, Rodrigo Duterte, presidente filipino que perseguiu Ressa e outros jornalistas por revelarem a verdade por trás de sua gestão.

Para Maria Ressa, o verdadeiro inimigo é a desinformação. Notícias falsas, bots no Twitter e no Facebook, manipulação de dados - tudo isso é sintoma de uma doença que tem acometido as democracias. E este livro é uma tentativa de mostrar que a ausência do Estado de direito no mundo virtual é devastadora.

'Atualmente, nos encontramos em meio aos escombros de um mundo que se foi, e precisamos de uma visão que antecipe o futuro e de coragem para imaginar e recriar o mundo como ele deveria ser: mais compassivo, mais igualitário, mais sustentável. Um mundo livre de fascistas e de tiranos. Estas páginas resumem minha jornada em busca desse objetivo'".

E sobre a autora lemos: "Maria Ressa nasceu em Pasay, nas Filipinas, em 1963. É CEO, cofundadora e presidente do Rappler, o principal portal  de notícias de seu país. Estudou na Universidade de Princeton e, por anos, investigou o terrorismo no Sudeste asiático, abrindo e administrando a sucursal da CNN em Manila e Jacarta. [...]. Em 2018, foi eleita a Personalidade do Ano pela revista Time e, em 2021, ganhou o Prêmio Mundial de Liberdade de Imprensa da Unesco e o Prêmio Nobel da Paz, ao lado de Dmitry Muratov. Como enfrentar um ditador é seu primeiro livro pela Companhia das Letras. 

Um livro poderoso. Um livro absolutamente necessário para jornalistas, para a classe política, senão para todos os que tem interesses em preservar a democracia. E lembrando ainda uma importante observação: o Facebook não é nada inocente. 


terça-feira, 7 de março de 2023

Os condenados da Terra. Frantz Fanon.

A curiosidade maior para ler Frantz Fanon me foi instigada ou provocada pela obra de Paulo Freire. Também por obras que abordam o colonialismo e o racismo. O gosto pelas fontes me levou à compra e  leitura do livro. Impressionante. A leitura me levou a uma viagem no tempo, em retrospectiva. Me levou a meus anos de formação. Isso me possibilitou uma recontextualização dos principais fatos históricos e me mostrou o quanto eu estava afastado da realidade e dos debates acadêmicos. Foi na década de 1960 que ocorreu a minha formação escolar, ensino ginasial, uma mistura de clássico e científico e a faculdade de filosofia. Tudo isso, nos seminários de Gravataí e Viamão. Terminei a filosofia no enigmático ano de 1968. Para mim, nesse tempo era inimaginável a compra de algum livro. Muitos, também não chegavam. Afinal, entrávamos no segundo tempo da ditadura militar, os anos de chumbo. Violência em estado puro.

Os condenados da Terra. Frantz Fanon. Zahar, 2022.

Bem, mas vamos falar do livro. Ele é uma colocação do colonialismo no contexto mundial. É um clamor pela descolonização total. Colonialismo é violência. É o estabelecimento de uma hierarquização absoluta entre os homens, entre os colonizadores e os colonizados, estes como as vítimas dos colonizadores. Ao longo do humanismo e do iluminismo, movimento desencadeado na Europa, muito se falou da dignidade do ser humano, de direitos, de liberdade, de igualdade e até de relações fraternas. O colonialismo e o seu agregado, o racismo, são a negação de tudo isso, de tudo o que a Europa apresentava para o mundo como sendo a Modernidade. Para dar legitimidade ao colonizador, os colonizados precisariam ser inferiorizados. O racismo foi a grande arma dessa afirmação de inferioridade. 

O livro de Frantz Fanon fala de descolonização, de descolonização total. O pano de fundo da obra é a guerra da independência da Argélia, uma das guerras mais cruéis da história da humanidade (1954 -. 1962). Novos experimentos de tortura foram ali testados. O livro foi lançado em 1961 e foi prefaciado por ninguém mais, ninguém menos do que Jean Paul Sartre. E, convenhamos, Sartre caprichou. Frantz Fanon, com este livro, também fez a sua despedida desse mundo. Morreu neste mesmo ano de 1961, aos 36 anos, vítima, não de seu envolvimento na guerra, como participante ativo da Frente de Libertação Nacional, mas da luta contra a leucemia. É uma obra explicitamente revolucionária. Vou apresentar a estrutura básica do livro, primeiramente.

São cinco capítulos: 1. Sobre a violência. Sobre a violência no contexto internacional; 2. Grandeza e fraquezas da espontaneidade; 3. Desventuras da consciência nacional; 4. Sobre a cultura nacional. Fundamentos recíprocos da cultura nacional e das lutas de libertação; 5. Guerra colonial e distúrbios mentais (distúrbios de quatro origens, com casos de praticantes da violência e de sofredores da mesma). Fanon era psiquiatra. Sobre a impulsividade criminosa do norte-africano na guerra de libertação nacional (as teorias da escola de psiquiatria de Argel). O livro termina com um texto de conclusão. Apenas um pequeno complemento. A violência é implícita ao colonialismo. A espontaneidade é uma referência à organização dos movimentos de libertação. A questão da consciência nacional é uma teoria insuficiente na libertação e humanização do colonizado. Tudo analisado com muita propriedade e profundidade. O mais impactante é a exposição de sua prática profissional no atendimento às vítimas, tanto dos colonizadores, quanto dos colonizados, estes geralmente vítimas de tortura.

Eu tenho em mãos a edição da Zahar do ano de 2022. É uma edição primorosa. Ela mantém o prefácio original de Sartre, da primeira edição francesa. Tem uma introdução à edição norte-americana de 2021, assinada pelo ativista dos direitos humanos Cornel West. Estes textos são apresentados como anexos. Tem também uma notável introdução, sob o título A linguagem da revolução: Ler Frantz Fanon desde o Brasil, assinado por Thula Rafaela de Oliveira Pires, Marcos Queirós e Wanderson Flor do Nascimento. Deixo um pequeno trecho do primeiro parágrafo do prefácio de Sartre:

"Não faz muito tempo, a Terra contava com 2 bilhões de habitantes, dos quais 500 milhões de homens e 1,5 bilhão de nativos. Os primeiros dispunham do Verbo, os outros tomavam-no emprestado. Entre uns e outros, serviam de intermediários reizinhos vendidos, donos de feudos e uma falsa burguesia inteiramente forjada. Nas colônias, a verdade se mostrava nua e crua; as metrópoles preferiam-na vestida; o nativo devia venerá-las. Como se veneram as mães, de certo modo. A elite europeia empenhou-se em fabricar um indigenato de elite; selecionava adolescentes, gravava-lhes na testa, com ferro em brasa, os princípios da cultura ocidental...". Já na apresentação brasileira dessa edição lemos o que segue:

"Frantz Fanon insistiu na ideia de que cada geração deveria descobrir sua missão. Cumpri-la ou traí-la. Na sua intensa, breve e extraordinária vida, fez da destruição do colonialismo tarefa primordial, juntando-se ao destino da maioria do mundo que buscava romper com os sustentáculos da dominação. Dedicou textos, lágrimas, suor, discursos, tratamentos clínicos, armas, livros e a própria saúde a esse fim. Os condenados da terra, publicado poucos dias antes de sua morte, em 1961, é a síntese do conhecimento acumulado de alguém que viveu pela e para a revolução".

Vamos, ainda no ensejo de despertar para a leitura, a apresentações do livro, como a da  contracapa. Nela lemos: "Ao analisar a situação colonial, Frantz Fanon tensiona política, sociedade e  indivíduo, demonstrando as estratégias e os efeitos do poder dominante. O psiquiatra e revolucionário martinicano desmonta a lógica imperialista europeia - branca, brutal e racista - e propõe uma "descolonização do ser". Só assim é possível criar um mundo realmente humano, onde a massa deserdada de homens e mulheres dos países colonizados e pobres - os condenados da terra - sejam os inventores de sua própria vida.

Publicado em 1961, poucos dias antes da morte prematura do autor, Os condenados da terra é um tratado magistral sobre as relações entre colonialismo, racismo, insubmissão e trauma psicológico". Já nas orelhas do livro temos as seguintes informações:

"Escrito com urgência de quem tem pouco tempo de vida, Os condenados da terra é a suma do pensamento de Frantz Fanon e também a mensagem final de um dos maiores intelectuais revolucionários do século XX.

Em meio à Guerra de Independência Argelina, da qual participou como militante da Frente de Libertação Nacional, Fanon trata do conflito, mas estende seu olhar para a luta anti-imperialista na África negra e nos países colonizados de outros continentes. O resultado da opressão é sempre o mesmo: raiva, dor e loucura. Essa espécie de 'santíssima trindade' negativa é a herança do colonizado; é a isso que ele é reduzido pelo colonizador.

Não por acaso, Fanon inicia o livro com uma profunda discussão sobre violência - pois o colonialismo ' é a violência em estado puro, e só se curvará diante de uma violência maior' - e conclui com as desordens mentais decorrentes da guerra colonial. Em seu espectro amplo, a violência está tanto na dimensão física quanto em sua potência simbólica, que rege a linguagem e o arbítrio da colonização.

Com clareza e contundência, Fanon radiografa as condições e os efeitos sociais, políticos e culturais do imperialismo colonizador e apresenta os caminhos possíveis para a libertação dos povos dominados - os condenados da terra -, que é sobretudo uma libertação do indivíduo, uma 'descolonização do ser'. Para ele, é preciso 'desenvolver um pensamento novo, tentar criar um homem novo', um ser consciente de sua humanidade, livre de toda forma de colonização - social, política, mental e espiritual.

Mais que uma análise teórica do colonialismo, Os condenados da terra é um manual para a revolução, um programa de estratégia política em prol do humanismo radical defendido por Frantz Fanon. Escrito em seis meses, com o autor doente e desenganado, o livro custou a ser compreendido em sua real dimensão e importância. Ponto culminante de uma obra incontornável abreviada por uma vida curta, hoje é considerado um clássico absoluto, referência maior para o pensamento decolonial e para a luta antirracista e antimanicomial em todo mundo".

Temos ainda uma minibiografia: Frantz Omar Fanon foi médico, filósofo político e militante revolucionário. Nascido em Martinica em 1925, formou-se em psiquiatria na França e exerceu a profissão na Argélia, onde se tornou membro da Frente de Libertação Nacional, movimento insurgente pela independência argelina. Morto precocemente em 1961, aos 36 anos, foi um dos mais importantes pensadores e ativistas a tratar das questões antirracistas e anticoloniais, deixando uma obra breve e fundamental, em que se destacam livros como Pele negra, máscaras brancas e Por uma revolução africana, este último publicado pela Zahar".

É.... A tal da cultura ocidental. Capitalista e cristã. Um processo de dominação. Como não lembrar de Boaventura de Sousa Santos, O fim do império cognitivo. A afirmação das epistemologias do Sul. Para situar a violência é altamente recomendável ver o filme de Gillo Pontecorvo,  A Batalha de Argel.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Torto Arado. Itamar Vieira Junior.

Na contracapa lemos: "Um romance que retrata - com extrema habilidade narrativa - um Brasil dolorosamente encalhado no próprio passado escravista. Um texto épico e lírico, realista e mágico". O que dizer desse livro? O que sugere o seu título - Torto arado. Quem é o seu autor? Sem entregar a história, vamos provocar, instigar para a leitura. Algumas passagens:

"Sobre a terra  há de viver sempre o mais forte". Página 262. A frase final. Quem seria este mais forte?

Torto arado. Itamar Vieira Junior. Todavia. 2022.

O que é viver de morada? "Um dia, meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre.  Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era tida como dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dali retirávamos nosso sustento". O pai procura responder ao filho: "Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento [...]. Aí você pergunta pra quem tem e quem precisa de gente para trabalho: 'Moço, o senhor me dá morada?.' [...] Trabalhe mais e pense menos. Seu olho não deve crescer para o que não é seu. [...] O documento da terra não vai lhe dar mais milho, nem feijão. Não vai botar comida na nossa mesa". Páginas 185-186. Viver de morada seria então um sucedâneo para a escravidão?

Como foi resolvido o problema da escravidão após a abolição? "Meu povo seguiu rumando de um canto para outro, procurando trabalho. Buscando terra e morada. Um lugar onde pudesse plantar e colher. Onde tivesse uma tapera para chamar de casa. Os donos já não podiam ter mais escravos por causa da lei, mas precisavam deles. Então, foi assim que passaram a chamar os escravos de trabalhadores e moradores...". Página 204. Simples assim. Uma mera questão de semântica.

E sobre a libertação dos escravos? Do discurso de Bibiana, para o povo da Fazenda Água Negra: "... Mas que liberdade? Não podíamos construir casa de alvenaria, não podíamos botar a roça que queríamos. Levavam o que podiam do nosso trabalho. Trabalhávamos de domingo a domingo sem receber um centavo. O tempo que sobrava era para cuidar de nossas roças, porque senão não comíamos. Era homem na roça do senhor e mulher e filhos na roça de casa, nos quintais, para não morrerem de fome. Os homens foram se esgotando, morrendo de exaustão, cheios de problemas de saúde quando ficaram velhos". Página 220.

Por que Torto arado? "Você recorda seu pai arrastando o arado antigo de ferro retorcido, pesado, rasgando a terra em linhas tortas. Aqueles sulcos onde lançava a semente do milho. Aquele arado sobre o qual ninguém falava, um objeto da paisagem, que chegou muito antes dos pioneiros, que ninguém sabia de onde tinha vindo, manejado pelas mãos dos trabalhadores mais antigos, dos que vieram de muito longe e sobre os quais não havia nenhuma história...". Página 247.

Bem. Essa é a temática. Onde ela se desenvolveu. Isso também dá para contar. No interior da Bahia. Na região da Chapada Diamantina, após a febre dos diamantes. Ah Joaquim Nabuco! Não basta abolir a escravidão. Também é preciso acabar com a obra da escravidão. Mas vamos deixar isso a cargo do leitor.

Durante a leitura eu me lembrei muito de Paulo Freire, sobre a educação emancipadora. De Paulo Freire eu ouvi pessoalmente, que ele conhecia as elites do mundo inteiro, mas que nenhuma se assemelhava à brasileira em perversidade. A leitura do livro também nos dá essa percepção. Lembrei também de Lília Schwarcz e o seu belo livro Sobre o autoritarismo brasileiro. O livro de Itamar também fala desse autoritarismo, mandonismo. A diferença está na forma de narrar. No livro de Itamar, quem fala é o povo, especialmente pela voz das irmãs Bibiana e Belonísia, as personagens em torno das quais a história é contada.

Capas de Torto arado. Mundo afora. Tradução para várias línguas.

As orelhas do livro nos dão outras pistas para a sua leitura: "A cena tem algo de iniciático e, como se verá mais tarde, ressoará de maneira extraordinária no futuro de suas protagonistas. Nas profundezas do sertão baiano as irmãs Bibiana e Belonísia encontram uma velha e misteriosa faca na mala guardada sob a cama da avó. Ocorre então um acidente. E para sempre suas vidas estarão ligadas - a ponto de uma precisar da voz da outra.

Filhas de humildes trabalhadores rurais descendentes de escravos, as irmãs irão crescer entre a extenuante rotina do campo, as tradições religiosas afro-brasileiras - com suas velas, incensos e ladainhas quase imemoriais - e a absorvente vida familiar. Com o passar dos anos, a antiga proximidade entre elas vai se desfazendo aos poucos. Enquanto Belonísia parece satisfazer-se com o serviço na fazenda e os encantamentos do pai, o curandeiro de corpo e espírito Zeca Chapéu Grande, Bibiana toma consciência do estigma da servidão imposto à família e decide lutar pelo direito à terra e pela emancipação dos trabalhadores rurais.

Numa trama conduzida com maestria e com uma prosa melodiosa, tendo quase sempre as mulheres como protagonistas, Torto arado é um romance belo e comovente que conta uma história de vida e morte, de combate e redenção. Itamar Vieira Junior não se perde, contudo, em duvidosas recriações de um idioma supostamente telúrico, nem trata seus personagens com certo paternalismo, tão daninho, que já assinalou um sem-número de tentativas, na ficção, de dar voz aos despossuídos do campo.

Pois um dos grandes trunfos deste romance é a representação - com eloquência e humanidade - dos descentes de escravizados africanos para os quais a Abolição significou muito pouco, visto que ainda sobrevivem em situação análoga à escravidão. Tudo isso traz ao romance, para além de sua trama que atravessa vozes, gerações e temas (a memória familiar, o trauma, a exploração, o misticismo afro-brasileiro, os laços sociais), um poderoso elemento de insubordinação social que vibra muito tempo depois de terminada a leitura".

Na orelha da contracapa ainda sobra um pequeno espaço para apresentar o autor: "Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia, em 1979. É geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA. Publicou os livros Dias e A oração do carrasco (finalista do Prêmio Jabuti), além de outros textos ficcionais em diversas publicações nacionais e estrangeiras. Com este Torto arado, venceu os prêmios LeYa, Jabuti e Oceanos". Um fenômeno editorial. Um selo colado na capa indica que o livro já vendeu 400 mil exemplares. Também já ganhou o mundo com tradução para as mais importantes línguas.

O livro é dividido em três partes: Fio de corte; Torto arado e Rio de sangue. E uma frase em epígrafe: "A terra, o trigo, o pão, a mesa, a família (a terra); existe neste ciclo, dizia o pai nos seus sermões, amor, trabalho, tempo". Raduan Nassar.  E..., por tanto falar em violência, como não lembrar de Os condenados da terra. 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

LULA. Biografia. Fernando Morais.

Um senhor livro. Uma senhora biografia. Um livro que revela a grandeza, tanto do biógrafo, quanto a do biografado. Um livro absolutamente necessário e imprescindível para quem quiser estudar a história recente do Brasil e conhecer os bastidores da política, da justiça, da mídia, do movimento sindical brasileiro e, por óbvio, a trajetória pessoal, sindical e política de Lula. Sem dúvida nenhuma, a história de Lula e a história do Brasil, ao menos a partir dos anos 1980, se interligam e se confundem por completo e por inteiro.

Lula - Biografia. Fernando Morais. Companhia das Letras. 2022.

Demorei um pouco para começar a leitura, embora a enorme curiosidade. Estive envolvido em outro projeto. A minha trajetória de professor sempre me obrigou a ser um atento observador e analista da política brasileira, razão pela qual nunca desleixei de estar atento aos fatos. Mesmo assim, Lula - Biografia, de Fernando Morais, me revelou inúmeros fatos e, especialmente, os bastidores dos fatos dos últimos quarenta ou cinquenta anos da história desse país. E, melhor ainda, narrados pela maestria daquele que, seguramente, pode ser considerado um dos maiores biógrafos brasileiros.

O primeiro volume da biografia termina com um posfácio com o título: Este livro e algumas cenas do próximo volume. Nele, Fernando Morais nos conta da alteração do projeto original, de escrever a biografia em apenas um único volume. Nele não caberia tanta história. Junto ao biógrafo e os editores, houve então o acerto de dividi-la em dois volumes. A forma de contar é eletrizante. A sequência dos fatos te prende à leitura, embora, nem sempre apresentados de forma cronológica. Aliás, de forma brilhante e instigante, a biografia não começa pelo nascimento de Lula, mas, creio que dá para fazer essa afirmação, pelo nascimento de seu terceiro mandato na presidência da república. De seu improvável e impossível terceiro mandato, após tanto assassinato de reputação e tentativa de cancelamento político e moral, tanto de Lula, quanto do PT, o partido por ele fundado.

O livro se constitui de 17 densos capítulos e mais um apêndice. Os capítulos não tem títulos, mas sim, pequenas sínteses dos fatos narrados. Os seis primeiros narram os episódios de sua prisão em Curitiba, seus antecedentes e os exatos 581 dias da prisão e da "Vigília Lula Livre". Lance de mestre. O livro, numa retrospectiva se volta para outra prisão de Lula, agora a do ano de 1980, quando liderava, na qualidade de presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, as greves que determinaram o início da agonia da insuportável ditadura militar, instaurada em 1964. Daí a história segue até a enorme decepção que Lula teve na eleição de 1982, como candidato derrotado a governador no estado de São Paulo. Essa depressão só foi aliviada com o consolo de Fidel, ao lhe dizer que fora pela primeira vez que um trabalhador fez mais de um milhão de votos. O resto da história será contada no segundo volume que já começou a ser escrito.

Para instigar a leitura, apresento a síntese das orelhas do livro: "Para além de juízos ou paixões, Lula está entre as maiores figuras políticas da história do Brasil. Único presidente  da nação oriundo do operariado, e campo magnético de um partido profundamente original em suas raízes, exerceu o poder carismático e a influência de modo mais duradouro que qualquer outro homem público no período republicano, salvo talvez Getúlio Vargas - com quem também partilha a virulência dos adversários.

Desde 2011, Fernando Morais ganhou acesso direto, franco e frequente a Lula. A essas dezenas de horas de depoimentos, somou o faro de repórter e a prosa cativante para compor projeto biográfico que traz um painel do personagem em toda a sua grandeza e complexidade.

Em narrativa que faz uso de recuos e avanços cronológicos para manter o ritmo eletrizante, Morais transporta o leitor logo nas primeiras páginas às salas de um Instituto Lula envolto em nervosismo e incredulidade ante a decisão judicial que determinou a prisão do ex-presidente como desdobramento da operação Lava Jato. A comoção do momento é conhecida, mas os bastidores da escolha de se entregar e detalhes sobre o estado de espírito de Lula só agora são revelados. De um relato recheado de informações inéditas sobre o período em que o biografado ficou detido em Curitiba, Morais puxa o fio da trama para o primeiro cárcere, em 1980, do então líder sindical que mudou a história das greves no país, perseguido pelo Dops e visto como ameaça a uma ditadura que já claudicava.

Entre outras passagens-chave para compreender a formação do homem, suas ideias e seus atos, o presente volume reconstituiu ainda a infância e juventude de privações e as relações familiares, a migração para São Paulo, o início da vida como operário e a aproximação com o movimento sindical, a história do novo sindicalismo, as greves do ABC, a fundação do PT - até a entrada sem volta no mundo da política e a primeira campanha eleitoral, uma derrota que quase o leva a desistir de tudo, do que é dissuadido por improvável figura. Era só o começo do capítulo seguinte desta saga, que culminaria em três derrotas e dois mandatos presidenciais".

E na contracapa ainda lemos: "Este volume da primeira biografia de vulto de Luiz Inácio Lula da Silva recupera os momentos determinantes para que o personagem chegasse a ser o que é: o líder de massas que, com avanços e tropeços, se inscreveu na história como agente e símbolo de grandes transformações no percurso nacional, nas últimas cinco décadas.

Com a verve narrativa conhecida dos leitores, desde obras já clássicas como Olga e Chatô, Fernando Morais nos conduz de maneira hábil e segura por estrutura nem sempre linear, dando ainda a ver os aspectos mais relevantes da vida política recente de Lula, até a anulação de suas condenações pelo Supremo Tribunal Federal, em 2021. 

Contribuição ímpar para compreender um personagem incontornável, Lula combina rigor na pesquisa e acesso inédito à fonte para se afirmar como uma biografia essencial".

Um livro para a história. Concluo dizendo que foi este Lula, o único ser capaz de deter o avanço fascista no Brasil, representado por Bolsonaro e pelos fanáticos e imbecis bolsonaristas. Essa é a verdadeira dimensão da grandeza de Luiz Inácio Lula da Silva.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Histórias de morte matada contadas feito morte morrida. Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues.

Um primor de livro. Escrito e produzido com todo o cuidado. Um tema grandioso. Profundamente humano. Estou falando de Histórias de morte matada contadas feito morte morrida - a narrativa de feminicídios na imprensa brasileira, de autoria das jornalistas e feministas Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues. A edição é da DROPS Editora. O ano da publicação é 2021. Na contracapa do livro temos colado um selo, com os seguintes dizeres: Câmara brasileira do livro. Jabuti 2022. Livro finalista. Com certeza, um indicativo de muitos méritos.

Histórias de morte matada contadas feito morte morrida. As narrativas de feminicídio na imprensa brasileira. Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues. Drops Editora. 2021.

Tanto o título, quanto o subtítulo nos dão o indicativo claro e preciso sobre o tema do livro, bem como nos dão também a ideia de que há problemas nessas narrativas. As narrativas correspondem ao nosso viés cultural. Lilia Schwarcz em seu livro Sobre o autoritarismo brasileiro nos aponta oito características desse viés cultural autoritário: 1. Escravidão e racismo; 2. Mandonismo. 3. Patrimonialismo; 4. Corrupção; 5. Desigualdade social; 6. Violência; 7. Raça e gênero; 8. Intolerância. Por óbvio, essas características estão todas entrelaçadas. Mas, patriarcalismo, raça e gênero ganham  capítulos à parte, capítulos especiais. Uma das conclusões do livro é a de que o feminicídio é negro, pobre e periférico. Segue o link da resenha Sobre o autoritarismo brasileiro.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/08/sobre-o-autoritarismo-brasileiro-lilia.html

Já na parte final do livro há um capítulo sob o título Recapitulando e repetindo - para não esquecer. Nesse capítulo há sete indicativos que nos apontam para o teor fundamental do livro; São eles: 1. A voz passiva que isenta assassinos de sua responsabilidade ao mesmo tempo que revitima a mulher; 2. O abuso no uso do suposto que por vezes coloca em dúvida até o crime ocorrido; 3. A justificativa/motivação do crime antes mesmo do relato ajudando assassinos a estruturarem sua defesa e o julgamento; 4. A desmoralização da mulher pela foto da vítima que ilustra a matéria e não o assassino; 5. Os verbos no futuro do pretérito; 6. O sujeito indefinido; 7. A escolha da hipótese mais absurda quando vários elementos apontam o crime de ódio (também conhecido como feminicídio).

Uma aula de linguagem e de jornalismo. São esses sete elementos que permitem a transformação apontada no título - Histórias de morte matada - contadas feito morte morrida. A análise dessas mortes matadas narradas pela imprensa brasileira é que constituem o teor do livro. E haja narrativas. O Brasil é um país tristemente campeão em feminicídios. São narrados e analisados casos da alta sociedade, com todo o glamour em que estão envolvidos e há os de pessoas anônimas, que são a absoluta maioria dos casos. Afinal, já apontamos: o feminicídio é  negro, pobre e periférico. Não vou entrar no teor das narrativas e de suas análises, mas o método da análise já está apontado.

Além das narrativas, há também uma classificação dos homicídios. Eles são classificados em transfeminicídios, em feminicídios indígenas, em feminicídios políticos (cometidos por razões políticas, como os casos de Dorothy Stang, Marielle Franco), ou por qualquer motivo, menos feminicídio (quando se tenta de tudo para não admitir o óbvio). Também, já na parte final do livro, há um capítulo que chama a necessária atenção para os órfãos dos feminicídios e a ausência de políticas públicas que lhes deem a devida assistência sob todos os aspectos que os casos envolvem.

O livro termina com uma série de conclusões como a reafirmação das autoras de uma frase de Marielle Franco: "Minha palavra é de mulher, mas vale". "Nossa palavra é de mulher, mas vale". As outras conclusões são as de que o feminicídio é um fenômeno endêmico, que precisa ser combatido, que o feminicídio é negro, pobre e periférico, que há a romantização/fetichização das narrativas, de histórias de amor que terminam com assassinatos por amor, quando simplesmente não há crimes por amor, apenas há crimes por ódio. E, finalmente, que o exercício do jornalismo é um compromisso ético e que é possível ser feito de uma forma diferente de como é feito.

O livro tem uma apresentação de Cecília Olliveira, jornalista especializada em Segurança Pública, um prefácio assinado por Maíra Kubík Mano, jornalista e cientista social, além de uma nota das editoras, todas destacando a importância e o valor da obra. Na orelha da capa temos a seguinte apresentação do livro, feita por Renata Lima, delegada de polícia civil (MG) e feminista. Vejamos: 

"Conhecer as histórias das mortes matadas de tantas mulheres, mortas duas, três vezes, revitimizadas, invisibilizadas, olvidadas, fez com que eu sentisse a dor e a responsabilidade de ser mulher, policial, neste momento de avanços e retrocessos.

Alguns nomes saltam aos olhos. Outros, anônimos, não passam despercebidos aos olhos de policial. Casos familiares demais, rotineiros demais.

Histórias de morte matada contadas feito morte morrida é uma leitura essencial para jornalistas, trabalhadores da comunicação e servidores do sistema de justiça criminal. Nós, muitas vezes fonte principal, se não a única, de informação a respeito dos crimes que ceifaram a vida de tantas mulheres.

Ler esta obra, escrita com tanto cuidado por Niara e Vanessa, foi doloroso, mas necessário para entender como o machismo e a misoginia são perpetuados de forma reiterada e cotidiana. É importante resistir e lutar por todos os espaços, para que as vozes das mulheres sejam ouvidas e suas histórias de vida contadas e respeitadas".

E na contracapa, já em letras maiores lemos: Quanto mais vulnerável é a vítima, menos respeito a seus direitos e à sua história, e isso se reflete na cobertura da imprensa. É CHOCANTE. É AVILTANTE. Um grande livro para uma impressionante leitura.



sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

A presença de Jesus Cristo nas lutas do povo. Um encontro raro com Alberto Panichella.

No dia quatro de fevereiro, num sábado chuvoso, houve um encontro maravilhoso de ex seminaristas da ordem religiosa dos xaverianos com o padre Alberto Panichella, que foi orientador deles, enquanto eles estiveram no seminário. Nesse encontro o padre Alberto também apresentou o seu livro, A presença de Jesus Cristo nas lutas do povo - Narrativas de um missionário das periferias. Muitos dos participantes do encontro, conforme os relatos, não se encontravam há quarenta anos. É fácil imaginar o clima do encontro. Também esteve presente o padre Décio, de Maringá. O professor Luiz Paixão me pediu sobre a possibilidade de fazer o encontro na chácara que tenho e, nessa condição, tive a satisfação de ser o anfitrião do encontro.

Os participantes do encontro. O padre Alberto é o de camisa vermelha e sem chapéu.

O encontro se dividiu, eu diria, em três partes. O primeiro foi o da liturgia do reencontro e do saber das novidades que cada um tinha para contar. Foi um momento, acima de tudo, de muitos abraços e de extravasamento de afetos, de bem-quereres. Ao observarem a foto, certamente vocês sentirão a ausência de mulheres nesse encontro. Elas até apareceram, mas preferiram fazer os seus passeios à parte. Certamente tiveram a intenção de que o encontro fosse efetivamente uma grande rememoração dos tempos de seminário. No seminário não havia a companhia das meninas.

O segundo momento foi o da fala do padre Alberto. A fala, de uma maneira geral, seguiu o roteiro do livro que também estava sendo lançado no encontro. Apenas com uma alteração de inversão do roteiro, com a fala começando pelo momento atual vivido pelo padre Alberto. Depois eu apresento também o roteiro do livro, livro que eu li com grande atenção e interesse.


A presença de Jesus Cristo nas lutas do Povo. O livro do padre Alberto Panichella.

Padre Alberto é hoje padre em Atalaia do Norte, no estado do Amazonas. Segundo a fala do padre Alberto, a cidade é a terceira mais pobre do país e a mais pobre do estado do Amazonas. Ela se situa na região do vale do rio Javari. Foi nessa região que ocorreu o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Tom Philips, no dia 5 de junho de 2022, fato de repercussão mundial. Pela Wikipedia busquei a informação de que a cidade possui 20.868 habitantes (Censo 2021), que está distante de Manaus a 1.163 km e que "o mais recente IDH do município é um dos menores do país, semelhante a países africanos como Zimbábue e Ruanda". Esse tema, pela sua premente atualidade, tomou quase o tempo todo da fala do padre. O padre conhece bem a cultura indígena. Os Yanomamis também estiveram presentes na fala.

As pessoas presentes também fizeram uma rápida apresentação, dizendo de seus afazeres e sonhos do momento atual de suas vidas. O grande destaque ficou com as dificuldades iniciais de suas vidas, logo após a saída do seminário. Quem viveu essa saída, sabe bem do que se trata. Uma vez, um professor que viveu essa experiência, me contou que ele veio ao mundo por duas vezes, uma no nascimento e outra, na saída do seminário. Nas duas vezes, me contou ele, ele se encontrava pelado, isto é, absolutamente sem nada.

O livro, também pelas palavras do padre Alberto, é uma viagem. Uma viagem pelas cidades brasileiras em que ele trabalhou. São cinco capítulos e uma espécie de adendo, no qual a última etapa, a atual, desenvolvida em Atalaia do Norte, mereceu algumas linhas. No primeiro capítulo estão relatadas as suas experiências na cidade de Londrina, nos Cinco Conjuntos. A base de seu trabalho sempre foi o da organização da comunidade nas Comunidades Eclesiais de Base, na ajuda às pessoas mais necessitadas e nas lutas coletivas por melhorias. Esse período o ocupou ao longo dos anos 1983 a 1987.

O segundo capítulo é dedicado ao tempo passado na cidade de Pinhais, na região metropolitana de Curitiba, entre os anos de 1987 e 1990. No terceiro, são relatadas as experiências desenvolvidas em Hortolândia, região metropolitana de Campinas, entre os anos de 1990 a 1993. O quarto capítulo é dedicado a São Paulo, entre os anos de 1993 a 2003, onde o trabalho foi desenvolvido no bairro de Guaianazes, um distrito da zona leste da cidade. No quinto capítulo a viagem já se desloca para a cidade de Manaus, onde os trabalhos foram desenvolvidos entre os anos de 2003 e 2011. As etapas seguintes compreendem atividades na Itália (padre Alberto, observem o sobrenome, é italiano) e as atuais, na longínqua Atalaia do Norte. Como leitor do livro dou o meu testemunho. A vida do padre Alberto, é uma vida inteiramente dedicada aos "esfarrapados do mundo", usando a expressão de Paulo Freire. Coragem e determinação sempre andaram na companhia do padre Alberto. Presença viva de um representante de Jesus Cristo nas lutas do povo. E lembrando a Boa Nova: "Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância". E..., vida sempre clama por mais vida. É a teologia da libertação.

A última etapa do encontro foi muito agradável. Uma costela, à moda fogo de chão foi servida aos presentes. Obviamente junto com cervejas caprichosamente geladas. Os mais resistentes permaneceram até o final da tarde, para não perderem o sempre lindo por de sol de Campo Magro. Um dia simplesmente inesquecível e digno de ser repetido. Como o dia foi também uma dia de reflexões, deixo aqui mais uma. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/07/sobre-o-significado-da-palavra-amem.html

Devo acrescentar um fato muito significativo. O nosso amigo Alissandro (O baiano), o artífice da costela "fogo de chão" adquiriu três exemplares do livro do padre Alberto para presentear pessoas de sua estima. Fato maravilhoso.


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

O deserto é fértil. Partir... caminhar. Dom Hélder Câmara.

Este post tem a sua origem em algumas falas recentes que fiz, especialmente, uma em Joinville, com os educadores e educadoras da IELUSC, Associação Educacional Luterana Bom Jesus, na abertura do ano letivo de 2023, sob a mediação das professoras Mariana e Kérley, a quem registro os meus agradecimentos. 

O post é retirado do livro de Dom Hélder Câmara O deserto é fértil, um livro de 1976 (Civilização brasileira). Me lembro até da sua compra, numa banca da rodoviária de Curitiba, no tempo de seu lançamento. Ah, bons tempos em que se vendiam livros em rodoviárias... O livro é tão bom, com reflexões tão profundas, que ele me acompanha permanentemente. Em minha vida, carrego comigo alguns santos, profetas inspiradores. Dom Hélder é um deles. O livro é tão bonito e, como está disponível apenas em sebos, tomo a liberdade de apresentar ao menos um de seus capítulos, procurando motivar os leitores para a busca do livro no seu todo. Uma leitura imprescindível e que, acima de tudo, faz muito bem. Mas, vamos ao capítulo, o de número 6.

O deserto é fértil. Dom Hélder Câmara. Civilização brasileira. 1976.


6. Partir... caminhar...

Partir é, antes de tudo, sair de si. Romper a crosta de egoísmo que tende a aprisionar-nos no próprio eu.

Partir não é rodar, permanentemente, em torno de si, numa atitude de quem, na prática, se constitui centro do Mundo e da vida.

Partir é não rodar apenas em volta dos problemas das instituições a que pertence. Por mais importantes que elas sejam, maior é a humanidade, a quem nos cabe servir.

Partir, mais do que devorar estradas, cruzar mares ou atingir velocidades supersônicas, é abrir-se aos outros, descobri-los, ir-lhes ao encontro.


Abrir-se às ideias, inclusive contrárias às próprias, demonstra fôlego de bom caminheiro. Feliz de quem entende e vive este pensamento: "Se discordas de mim, tu me enriqueces".

Ter ao próprio lado quem só sabe dizer amém, quem concorda sempre, de antemão e incondicionalmente, não é ter um companheiro mas, sim, uma sombra de si mesmo. Desde que a discordância não seja sistemática e proposital, que seja fruto de visão diferente, a partir de ângulos novos, importa de fato em enriquecimento.


É possível caminhar sozinho. Mas o bom viajor sabe que a caminhada é a vida e esta supõe companheiros. Companheiro, etimologicamente, é quem come o mesmo pão.

Feliz de quem se sente em perene caminhada e de quem vê no próximo um eventual e desejável companheiro.

O bom companheiro preocupa-se com os companheiros desencorajados, sem ânimo, sem esperança... Adivinha o instante em que se acham a um palmo do desespero. Apanha-os onde se encontram. Deixa que desabafem e, com inteligência, com habilidade e, sobretudo, com amor, leva-os a recobrar ânimo e voltar a ter gosto na caminhada


Marchar por marchar não é ainda verdadeiramente caminhar. 

Caminhar é ir em busca de metas, é prever um fim, uma chegada, um desembarque.

Mas há caminhada e caminhada.

Para as Minorias Abraâmicas, partir, caminhar significa mover-se e ajudar muitos outros a moverem-se no sentido de tudo fazer por um mundo mais justo e mais humano.


Se discordas de mim, tu me enriqueces.


Se és sincero

e buscas a verdade

e tentas encontrá-la como podes,

ganharei

tendo a honestidade

e a modéstia

de completar com o teu

meu pensamento,

de corrigir enganos,

de aprofundar a visão...


Estás cercado de ti, por todos os lados


Para te livrares de ti mesmo

lança uma ponte

por cima do abismo de solidão

que o teu egoísmo criou.

Trata de ver, além de ti.

Busca ouvir alguém.

E, sobretudo,

tenta o esforço de amar

ao invés de simplesmente te amar...


Queres ser, 


então perdoa:

tens que te livrar, primeiro,

do excesso de ter,

que te enche de tal maneira

- da cabeça aos pés -

que não resta espaço

para ti mesmo

e ainda menos para Deus (Páginas 27 a 30).

Como na abertura da fala houve a apresentação do coral da instituição e eles cantaram Wave, de Tom Jobim. ... - Fundamental é mesmo o amor. É impossível viver feliz sozinho, imaginem se eu não alterei o script da fala.

Tenho dois posts para apresentar, ligados ao tema. O primeiro sobre o significado da palavra amém, uma belíssima reflexão. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/07/sobre-o-significado-da-palavra-amem.html e o segundo, sobre a vida benfazeja de Dom Hélder que, por ela nos demonstrou que o Fundamental é mesmo o amor. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/12/dom-helder-o-artesao-da-paz-raimundo-c.html

E, Mariana e Kérley, amigas queridas, dedico o post para vocês.




segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 25. Milton Santos.

Concluo hoje a análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar o geógrafo Milton Santos, numa resenha de Fábio Betioli Contel. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial de 2014. Ao todo são apresentados 25 intérpretes, em resenhas escritas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB). São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil ´clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

Fábio Betioli Contel divide a sua resenha sobre Milton Santos em duas partes: na primeira mostra a sua trajetória pessoal, sua formação, seus primeiros trabalhos e o início de seu envolvimento com o mundo da geografia. Na segunda, ele apresenta o grande geógrafo, quando este já estava instalado no espaço privilegiado da USP e produziu toda uma filosofia da geografia. Não é fácil fazer uma síntese de um intelectual tão produtivo, como o foi Milton Santos, com mais de 40 livros publicados, depois de ter trabalhado em muitas das grandes universidades pelo mundo afora.

Milton Santos nasceu na pequena cidade do interior baiano, Brotas de Macaúbas, no ano de 1926. Sua formação escolar começa em sua própria casa, uma vez que seus pais eram professores. Aos dez anos cumpre, segundo ele próprio, o seu "primeiro exílio", num colégio interno em Salvador, um colégio que privilegiava a formação humanista, com forte carga nas disciplinas de filosofia e de literatura. Em 1944 ingressa na Faculdade de Direito e explica as razões dessa sua escolha: "A faculdade de direito era o lugar da formação geral, inclusive porque o direito não era ministrado como algo técnico; o direito era ensinado juntamente  com economia política [...] juntamente com sociologia jurídica, teoria do Estado, direito constitucional [...]. Isso dava uma base em humanidades que nenhum outro curso oferecia". Foi o tempo em que entrou em contato com Josué de Castro e o seu Geografia da fome (1946).

Milton Santos destaca que ao longo do seu curso de Direito foi influenciado por bons professores. Ele ingressa na vida profissional como professor de geografia em Ilhéus, onde também inicia uma outra atividade que não mais abandonará, a cooperação com jornais. Ele volta a Salvador, depois de aprovado em concurso na Faculdade Católica da cidade. Continua também com a sua atividade jornalística. Exerce cargos políticos, sempre voltados a projetos de desenvolvimento. É o tempo em que se aproxima do Partido Comunista e do governo Jango. A convite de professores franceses faz o seu doutorado em Toulouse. Em 1964 inicia o seu segundo exílio, que ele qualificou como um desenraizamento. Irá trabalhar em universidades famosas como o MIT e a Sorbonne e também em organismos internacionais como a OIT, a OEA e a própria ONU. Estes trabalhos o levam para a África. Emprego e urbanização nos países do Terceiro Mundo o fascinam.

Ao final dos anos 1970 ele regressa ao Brasil e, mesmo com todo o currículo que o acompanha, ele enfrenta dificuldades. Ele próprio nos conta: "os professores das universidades, mesmo aqueles que se fingiam de esquerda, corriam dos professores exilados, como o diabo da cruz". Ele volta para a Bahia, pois queria um filho baiano. Trabalha na UFRJ por um breve tempo e se instala definitivamente na USP., onde encontra todas as condições favoráveis para desenvolver o seu trabalho. É um tempo de efervescência cultural com a ditadura militar agonizante.

Na USP, ele busca uma filosofia para a geografia. A urbanização e o espaço geográfico continuarão sendo os temas que ele privilegia, tudo sob a ótica de uma "nova geografia". Em 1996, já com 70 anos lançará o seu livro mais importante: A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, que, conforme ele próprio afirma, lhe consumiu 15 anos de trabalho. Ele assim define o espaço geográfico, que ele tanto estudou: "O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e de sistemas de ações, não consideradas isoladamente, mas como o  quadro único no qual a história se dá. No começo era uma natureza selvagem, formada por objetos naturais, que ao longo da história vão sendo substituídos por objetos fabricados, objetos técnicos, mecanizados e, depois, cibernéticos, fazendo com que a natureza artificial tenda a funcionar como uma máquina. [...] Os objetos não têm realidade filosófica, isto é, não nos permitem conhecimento, se os vemos separados dos sistemas de ações. Os sistemas de ações também não se dão sem os sistemas de objetos".

Nesse tempo, também não abdica da militância política, brigando mais por ideias do que pela militância partidária. Outro importante tema de que se ocupa é o da globalização, que ele considera fruto de duas tiranias: a tirania da informação e a tirania do dinheiro. É o sistema em que "algumas poucas empresas de alcance global possuem condições de minimizar a ação republicana dos Estados e arrastar para sua órbita, direta ou indiretamente, todas as regiões produtivas, todas as populações, os excedentes e os sistemas culturais locais". Em seu livro Por uma outra globalização, ele reivindica que o homem seja o centro das preocupações civilizacionais. Continuou também a sua militância nos jornais, ocupando colunas na Folha de S.Paulo e no Correio Brasiliense. Era tido como um professor elegante, rigoroso e generoso.

Vejamos a parte final da resenha, em que Fábio procura mostrar o sentido de sua trajetória de vida: "Seu projeto de vida, nesse sentido, se completou plenamente. Além de geógrafo, Milton foi um intelectual público, na acepção que Sartre dá à palavra, isto é,  um 'guardião dos fins fundamentais (emancipação, universalização e portanto humanização do homem)'. Lutou por esses 'fins fundamentais'  a seu modo, num incansável combate por meio da práxis intelectual, a partir de suas ideias libertárias. Seu legado é também um convite. Um convite para que todos aqueles preocupados com o destino da humanidade não esmoreçam na difícil batalha de tornar o espaço geográfico guarida perfeita para a vida digna de toda a população do mundo. Sem exceções".

Tenho no meu blog um dos textos que ele publicou na Folha de S.Paulo, que considero fundamental que seja do conhecimento de todos os educadores. Uma espécie de testamento. É sobre os princípios da educação, para que ela não forme "deficientes cívicos".

 http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/03/os-deficientes-civicos-milton-santos.html

E, como de hábito, o último trabalho. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/01/interpretes-do-brasil-classicos_28.html

 

 

sábado, 28 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 24. Paulo Freire.

Quase concluindo a análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, vamos hoje trabalhar o "Patrono da Educação Brasileira", Paulo Freire, numa resenha de Ângela Antunes, do Instituto Paulo Freire. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial de 2014. Ao todo são trabalhados 25 intérpretes, em resenhas escritas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

Paulo Freire nasce na cidade de Recife no ano de 1921 e morre em São Paulo em 1997. Toda a sua obra é autobiográfica e poderia se resumir, segundo a resenhista Ângela Antunes, como "o estar sendo no mundo", agindo nele e o transformando. Também reflete bem toda a sua obra o lema - ação - reflexão - ação, ou, a constante reflexão sobre a prática e o fato de sermos seres inconclusos, em construção, sempre na busca do SER MAIS. E em função disso, sermos movidos pela alegria e pela esperança, ou, numa palavra mais sua, pela amorosidade.

Seu casamento com Elza Maria Costa de Oliveira, uma professora, lhe permitiu uma ampla participação nos debates e na prática das suas atividades educacionais. Paulo formou-se em Direito, mas largou o ofício já em sua primeira causa. Começa a lecionar no próprio colégio que o abrigara com uma bolsa de estudos, mendigada pela sua mãe. Foi ser professor de português. Também trabalhou como professor no SESI de Pernambuco. Foi nessas atividades primeiras, que começa a se esboçar aquilo que se convencionou chamar de "método Paulo Freire", que é, na verdade, muito mais uma concepção de educação: "Pensar a prática para melhor praticar", ou uma "concepção dialética da educação". O seu "método" passa por três etapas, a saber: leitura da realidade - seleção de palavras (temas geradores) e a problematização. 

Como Ângela sintetizou essas três etapas, achei interessante apresentá-las: 1. Etapa da investigação: Descoberta do universo vocabular, em que são levantadas palavras e Temas Geradores à vida cotidiana dos alfabetizandos e do grupo social a que eles pertencem. 2. Etapa da tematização: São codificados e decodificados os temas levantados na fase anterior, contextualizando-os e substituindo a primeira visão mágica por uma visão crítica e social. 3. Etapa de problematização: Nessa ida e vinda do concreto para o abstrato e do abstrato para o concreto, volta-se ao concreto problematizado. Descobrem-se os limites e as possibilidades captadas na primeira etapa. Assim, a alfabetização nunca é dissociada da conscientização. Na avaliação das práticas, sempre é considerado o grau de conscientização que foi obtido. E, lembrando bem, o seu método não é uma técnica de ensino.

Essa sua concepção de educação passa por alguns pressupostos filosóficos: O ser humano é um ser de relações; as relações só se estabelecem entre seres iguais, não hierarquizados; os seres são inconclusos e conscientes da sua inconclusão e estão em busca (transcendência) do "ser mais"; o diálogo, e não o discurso, é o mediador da relação entre os seres que interagem. A humildade e a predisposição para a abertura ao saber são condições indispensáveis para o ser educador. Tudo isso passa por uma construção coletiva e não por uma mera transmissão. Busca-se assim uma cidadania ativa e uma cultura que estimule a solidariedade. 

O seu modo de pensar se formou através das atividades educacionais desenvolvidas em Recife e ele ganha grande notoriedade com o programa de alfabetização de adultos, desenvolvido na cidade de Angicos (RN). Nesse tempo é fortemente influenciado pelos pensadores do ISEB (nacionalismo desenvolvimentista) e busca uma grande compreensão da realidade brasileira, conhecê-la, para transformá-la. Essas suas atividades são tolhidas pelo golpe de 1964, quando é preso por longos 72 dias, rumando depois para o seu exílio no Chile, onde encontra condições para a escrita de seus dois primeiros grandes livros: Educação como prática da liberdade e Pedagogia do oprimido. Nessas obras estão todos os fundamentos de sua concepção educacional, uma concepção que beneficie os "esfarrapados do mundo".

Em 1969 irá para os Estados Unidos. Lá, não será estudante em Harvard, mas sim, professor. Permanece por pouco tempo, rumando para Genebra, para trabalhar no Conselho Mundial de Igrejas por dez anos. É um tempo de grandes trabalhos e novos livros. Ele colabora na organização de projetos educacionais para as recém libertas colônias da África, de língua portuguesa. Educação e emancipação na prática, na superação do colonialismo e de todos os seus vícios, como o patriarcalismo e o imperialismo capitalista. Como esses países praticariam agora a conquista da liberdade política?

O ano de 1980 marca o seu retorno ao Brasil. A UNICAMP e a PUC/SP o acolherão. Em 1989 ele assume a Secretaria de Educação da cidade de São Paulo, a convite da prefeita Luíza Erundina. (a respeito ver o livro Educação na cidade). Licencia-se do cargo, premido pela urgência de escrever. O seu último livro completo é uma espécie de testamento seu - Pedagogia da autonomia - saberes necessários à prática educativa, livro com o qual ele teve uma enorme preocupação para que ele chegasse ao máximo possível de educadores. Recebe inúmeros reconhecimentos internacionais, títulos de Doutor honoris causa das mais renomadas universidades mundiais e é agraciado com o título de Patrono da Educação Brasileira, título que lhe foi conferido em 2012 pelo Congresso Nacional.

A resenhista lhe presta um tributo com as palavras finais da Pedagogia do oprimido: "Se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar".

Eu, particularmente, gostei muito de uma biografia sua, O educador - um perfil de Paulo Freire, de Sérgio Haddad, que li e resenhei. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/03/o-educador-um-perfil-de-paulo-freire.html. Também deixo a resenha do belo livro Pedagogia da autonomia, livro com o qual eu já trabalhei incansavelmente: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/08/pedagogia-da-autonomia-saberes.html

E, como de hábito, o trabalho anterior. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/01/interpretes-do-brasil-classicos_27.html

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 23. Maurício Tragtenberg.

Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - Clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar o historiador e militante, Maurício Tragtenberg, numa resenha de Paulo Douglas Barsotti. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 intérpretes, em resenhas escritas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se iniciou no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

Barsotti inicia a sua resenha com uma frase em epígrafe: "O enigma decifrado brasileiro é que aqui tudo se reforma e nada muda". E logo emenda com uma segunda: "Qualquer Estado por natureza é conservador". Uma bela definição do resenhado. Maurício Tragtenberg nasceu em Getúlio Vargas (RS), no pequeno distrito de Erebango, no ano de 1929. É filho de imigrantes judeus ucranianos, fugidos dos pogroms czaristas. A sua primeira escola foi num galpão da pequena colônia em que nasceu. Começaram ali as escolas e universidades de sua vida, como costumava dizer.

Tragtenberg nunca pertenceu a qualquer ortodoxia, sempre defendendo a autonomia dos trabalhadores, criticando veementemente o capitalismo, o stalinismo e as burocracias. Mas teve aproximações com Marx, com os anarquistas, com Trotski, com Max Weber... Foi sempre eclético e pluralista. Desde cedo conheceu a literatura russa e se interessou pela sua Revolução de 1917. Considerou o stalinismo como uma perversão do socialismo e o denunciou pela sua aproximação com o capitalismo. A sua primeira expansão do conhecimento veio com a mudança para Porto Alegre, onde presenciou uma ação da Ação Integralista Brasileira (AIB), enxergando nela uma antecipação dos pogroms fascistas. Via na AIB uma extensão dos movimentos nazifascistas europeus.

De Porto Alegre segue para São Paulo, residindo nos bairros judeus, e, mais tarde, com os trabalhadores italianos, no Brás. Ali fez uma das escolhas de sua vida: nem judeu, nem cristão, mas ateu. No pós segunda guerra, por um breve tempo militou no PCB, rompendo com ele por causa da burocracia stalinista. Levou suas dúvidas ao Partido, sendo que ele as proibia. Em São Paulo conheceu Hermínio Sachetta, famoso trotskista. Permaneceu no trotskismo por um breve tempo, pois o considerava como um mero stalinismo mais intelectualizado. Fez progressos na vida. De Office boy, passa, em concurso público, na empresa de água e eletricidade, trabalhando seis horas por dia. Assim conseguiu frequentar a biblioteca pública Mário de Andrade, onde conheceu Florestan Fernandes e Antônio Cândido. Estes lhe orientaram leituras e lhe indicaram o caminho para ingressar na USP, mesmo sem o ensino básico completo, através da apresentação de um ensaio. Foi o que ele fez. Das ciências sociais migrou para a história.

Formado, torna-se professor da rede pública, trabalhando em Iguape, Taubaté, Mogi das Cruzes e na capital. No ensino superior, começa por São José do Rio Preto. Em 1964 começam as suas grandes agruras. É atingido pelo primeiro Ato Institucional, com a demissão do emprego. Passa um tempo internado em hospital, quando conheceu a burocracia médica. Aprofunda suas leitura de Max Weber. Pelas mãos de Cláudio Abramo chega a Folha de S.Paulo e ao Notícias Populares, onde mantém uma coluna que se tornou famosa por ser dirigida diretamente aos trabalhadores: No Batente. Essa coluna perturbou a classe patronal, o que lhe rendeu um curto prazo de validade. Em 1973 concluiu o seu doutorado, versando sobre o tema da burocracia. A orientação foi de Francisco Weffort. Depois foi professor da UNESP, UNICAMP e USP, tendo passado também pela PUC/SP e pela FGV.

Na sua coluna No Batente abordava, sem medo, os temas mais candentes. Considerava as palestras de motivação como tentativas para que as empresas tivessem escravos satisfeitos e contentes e interpretava o anúncio da exigência de boa aparência como um recado: negro não serve. Passou a trabalhar junto a organizações sindicais e orientou muitos trabalhos acadêmicos sobre o tema do sindicalismo. Defendia a organização autônoma dos trabalhadores, mas percebeu também o seu enredamento na burocracia sindical. Sempre a burocracia. Em seus livros, considerou a revolução de 1930 como um arranjo de modernização das elites, mas considerou 1964 muito pior. 1964 desfez as conquistas trabalhistas dos governos Vargas e promoveu o milagre brasileiro, através da super exploração do trabalhador.

Viu o renascer do sindicalismo brasileiro, com a aproximação do fim da ditadura militar, com certo entusiasmo, que se desfaz, à medida em que ele deixa de ser a organização autônoma dos trabalhadores. Com a mesma dose de otimismo viu o surgimento do Partido dos Trabalhadores, que também logo se desfez, ao perceber que o seu projeto não passava de disputas eleitorais. A Constituinte de 1988 lhe deu a oportunidade de estudar todas as constituintes brasileiras, quando chegou à conclusão da frase já registrada na epígrafe: "tudo se reforma e nada muda". Quanto ao Partido dos Trabalhadores, afirma que este se transformou num mero braço esquerdo do sistema. Ao defender a autonomia dos trabalhadores, critica a democracia representativa pela delegação de poder que ela dá aos eleitos: "Não há luta ou vida por procuração".

Sua obra está reunida em dez volumes, numa publicação da UNESP. Para ressaltar a sua importância deixo registrados os dois parágrafos finais da resenha: "A debilidade histórica das oposições brasileiras caminha pari passu com os processos de conciliação das classes dominantes e exclusão das massas populares da participação política. Tragtenberg ilustra a questão recorrendo a Justiniano José de Almeida (1812- 1863), jornalista ligado ao Partido Conservador que, 'referindo-se à velha Regência', caracteriza a política brasileira em três movimentos: ação, reação e translação. Assim, 'a primeira ação é popular, a segunda é absorvida pela elite; e a terceira é a conciliação'. No Brasil, arremata Tragtenberg, tudo 'se resolve na conciliação'. Esse é o 'enigma decifrado brasileiro' em que 'tudo se reforma e nada muda'.

Para finalizar, Maurício Tragtenberg, além de escritor e cronista do Brasil, possui um extraordinário trabalho acadêmico, em que foi orientador de inúmeras teses e mestrados que abriam espaço para estudos às vezes considerados 'estranhos à Universidade' Apesar de todas as agruras vividas, era difícil ver Tragtenberg sem seu senso de humor cáustico e de fina ironia, modesto, sempre escutando as pessoas, tolerante, sem jamais camuflar suas posições e sempre disposto a prestar solidariedade efetiva aos colegas e amigos que, assim como ele, sofriam discriminações políticas e acadêmicas. Persona rara que faz muita falta no meio político acadêmico brasileiro".

E, como de hábito, o trabalho anterior. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/01/interpretes-do-brasil-classicos_25.html