quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A Sucessão Papal 2. A Guinada Conservadora.

O Concílio Vaticano II praticamente ficou inconcluso. Temas como o celibato clerical, a contracepção e a participação feminina na hierarquia passaram em branco e até hoje são temas absolutamente polêmicos. Com a inesperada e aparentemente inexplicável morte de João Paulo I e a eleição de João Paulo II, a igreja volveu-se à direita. As questões sociais, se não ficaram ausentes, passaram a ocupar uma posição absolutamente secundária. Os teólogos da teologia da libertação foram praticamente sufocados e alijados da hierarquia. Dioceses com bispos democráticos e progressistas foram divididas, como aconteceu com a arquidiocese de São Paulo. Esta divisão nos é narrada pelo próprio Cardeal Arns, em seu belo livro de memórias Da esperança à Utopia - Testemunho de uma vida. Cerca de 100 teólogos foram punidos, entre eles, o brasileiro Leonardo Boff.

Sempre que abordei questões de religião em minhas aulas, sempre as fiz do ponto de vista cultural e nunca pelo da religião e da fé. Normalmente estas abordagens integravam um capítulo sobre a cultura ocidental, profundamente cristã e capitalista. A partir daí recompúnhamos a sua origem. O cristianismo sob este ponto de vista é possivelmente a mais sofisticada construção histórica e cultural que existiu. Do judaísmo herdou o monoteísmo e a Bíblia, como a palavra de Deus; dos gregos recebeu a racionalidade e a concepção individual. O mundo das idéias de Platão rapidamente se transformou no mundo das idéias divinas e, - dos romanos, com a fusão das heranças anteriores, foi acrescida a organização. Entre nomes e fatos apontaria São Paulo e o Concílio de Jerusalém, O Concílio de Niceia (Constantino e a ortodoxia) e Santo Agostinho, como aqueles, e com os quais, os pilares fundamentais da doutrina estavam lançados. No século IV e V, quando viveu Santo Agostinho, o cristianismo já tinha praticamente a sua configuração atual. É a primeira doutrina que visa a universalidade. Um enorme projeto de poder, portanto. E como tal, foi um enorme sucesso.
Um belo livro do historiador Paul Johnson, História do Cristianismo. Imago, 677 páginas.

Deixo aqui como recomendação de leitura, para quem se interessar mais de perto pelo tema, o extraordinário livro do conservador historiador inglês, Paul Johnson - História do cristianismo, uma publicação da Imago.

Para entender bem o espírito do cristianismo, na sua guinada conservadora, eu recorro a um texto, retirado do livro de João Paulo II, intitulado Memória e Identidade, que eu considero profundamente ilustrativo. Ele está no capítulo 2 - Ideologias do mal - Então, qual foi a origem das ideologias do mal? Quais são as raízes do nazismo e do comunismo? Como se chegou à sua queda?

A partir desta apresentação começa a interpretação papal. Vou assinalar a parte do texto que considero fundamental. Quem não o considera suficiente, recomendo o livro inteiro. É uma publicação da Objetiva. Vejamos. O que quero destacar está escrito na quarta página do capítulo. As anteriores são de introdução ao tema proposto:
Livro de João Paulo II, onde se encontra o texto transcrito abaixo.

[...] "A fim de ilustrar melhor este fenômeno, é preciso remontar ao período anterior ao Iluminismo, sobretudo à revolução operada no pensamento filosófico por Descartes. Aquele seu "cogito, ergo sum - penso logo existo" desencadeou uma reviravolta no modo de fazer filosofia: no período pré-cartesiano, a filosofia - e por conseguinte o cogito ou melhor, o cognosco - estava subordinado ao esse, que era visto como primordial. Aos olhos de Descartes, por sua vez, o esse aparecia secundário, enquanto ele considerava primordial o cogito; deste modo realizava-se não só uma mudança de direção no filosofar, mas decididamente abandonava-se o que tinha sido até então a filosofia e, mais concretamente, a filosofia de Santo Tomás de Aquino: a filosofia do esse. Antes tudo era interpretado na perspectiva do esse e procurava-se uma explicação de tudo dentro dessa ótica: Deus, Ser plenamente auto-suficiente (Ens subsistens), era considerado o suporte indispensável para todo o ens non subsistens, ens participatum, isto é, para todos os seres criados e, por conseguinte, também para o homem. O cogito, ergo sum implicava uma ruptura com essa linha de pensamento: tudo o que for esse - tanto o mundo criado como o Criador - permanece no campo do cogito como conteúdo do conhecimento humano. A filosofia ocupa-se dos seres enquanto conteúdo do conhecimento, e não como existentes fora dele".

Mais explícito é impossível. É a mais pura renovação da subordinação agostiniana, da razão à fé, da razão como uma serva da teologia. A razão é uma dádiva que os homens receberam de Deus, para melhor entender a palavra de Deus e, - nunca para suscitar dúvidas ou afastamento. E aí se encerra a discussão. Ou você crê ou não crê.É um pacote pronto, onde também está incluída a questão da infalibilidade do papa. Creio que isso é fundamental para entender as dificuldades que Bento XVI teve com os temas relacionados ao ecumenismo. Qualquer interpretação diferente disso será dar superioridade ao racional - o que é a inversão entre o esse, o ens subsistens e o cogito, o ens non subsistens. Não existe espaço para o diálogo. A doutrina é hermeticamente fechada. Não existe espaço para nenhum tipo de concessão. Temas novos são tratados  com a velha doutrina imutável.
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A foto de João Paulo II. Para dentro, a doutrina rígida, para fora, uma aproximação carismática.

Isto gera crises? É óbvio que sim. Isso é a fonte de toda a autoridade e poder intolerante, contra o qual não há argumentos. Ainda bem que vivemos em tempos mais abertos, em que foi se construindo uma sociedade mais aberta, mais plural e que caminhou a passos largos na consolidação de direitos civis, políticos e sociais. Amanhã continuarei com o tema.





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