quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A Sucessão Papal 1. João XXIII e o Concílio Vaticano II.

Todos somos profundamente cristãos. Mesmo não sendo seguidores ou praticantes, o cristianismo está entranhado em nós mais profundamente até, do que possamos imaginar. Ele está nas instituições a que temos de nos submeter, ele está na moral e nos costumes, no linguajar e no comportamento, na  timidez nos relacionamentos, na fala e especialmente na obediência, ou então, na dificuldade que temos, em assumir posições que exigem a tomada de decisões. Somos formados (a catequese), em um mundo de verdades e de valores eternos e imutáveis que nos apontam para o caminho da salvação. Isto está entranhado em nós, mesmo quando negamos essa realidade.

Eu nasci em Harmonia, mas em estado de pacífica beligerância. "Família que não tem um filho padre é família que não rezou o suficiente e, portanto, terá dificuldades em se salvar", pregava o Cônego Mallmann, vigário de Harmonia, por mais de cinquenta anos. Como eu era o mais novo entre cinco irmãos e nenhum deles seguiu a carreira, sobrou para mim. Todos os sonhos e desejos dos que me rodeavam se sintetizavam em um só: Esse menino tem que ser padre. O limite do nosso imaginário eram os céus de harmonia, que se conectavam diretamente com os céus do paraíso. E haja humildade, piedade, castidade, recolhimento e renúncia. E..., controle.

Menino de onze anos, fui para o seminário: Bom Princípio me acolheu. Fiz o quinto ano, a famosa admissão ao ginásio e o primeiro ano ginasial, indo então para Gravataí, onde completei o curso ginasial e o ensino médio. Depois fiz mais quatro anos de filosofia em Viamão. Depois fui para o mundo, onde estou e, espero  que, ainda por um longo tempo.

Hoje puxo as minhas memórias, para trazer ao presente o Concílio Vaticano II, possivelmente o primeiro grande impacto sobre a minha vida. Vamos contextualizá-lo. Ele foi convocado pelo Papa João XXIII, em janeiro de 1961, teve o seu início em outubro de 1962, também com João XXIII e o seu encerramento ocorreu em dezembro de 1965, já sob o papado de Paulo VI. Fazendo a contagem regressiva, foi o tempo em que estava no ensino médio, pois me formei em 1968.

Me lembro perfeitamente que estudamos os concílios promovidos pela Igreja católica, por memorização de questionários. Fizemos uma maratona, com eliminatórias e a grande final. Um colega meu e eu fomos imbatíveis. Acertávamos tudo. Não erramos nenhuma. Os dois, fomos proclamados como os maiores entendedores de concílios, ao menos no seminário e pelo consagrado método do questionário. Como a memória é altamente seletiva, não me lembro mais absolutamente de nada.

Mas lembro do ambiente e dos impactos produzidos. Vou aqui reproduzi-los, juntando memória e alguma coisa a mais. A mais marcante de todas foi a de que João XXIII me cativou. Continua sendo meu ídolo. Me emocionei profundamente, quando no ano passado visitei a cidade de Bérgamo e lhe pude prestar reverência em seu túmulo, na catedral da sua cidade natal. O papa dos pobres. Único papa de origem humilde.
Homenagem ao papa João XXIII, na sua sepultura, na catedral de sua cidade natal, Bérgamo.

Hoje reflito sobre o gesto da convocação de um concílio e sobre o seu significado. Historicamente os concílios estão ligados a momentos de crise ou fragilidade do catolicismo e, quase todos eles terminavam por afirmação de dogmas, verdades absolutas, proclamadas pela igreja. Basta lembrar o Concílio de Trento, no século XVI, como reação à ameaça protestante e o próprio Concílio Vaticano I (1869-70) em que foi afirmado o dogma da infalibilidade do papa. No concílio Vaticano II não foi proclamado nenhum dogma. Foi discutido o "aggiornamento" da igreja ao giorno - dos complicados anos 60.

João XXIII não tinha uma formação mais refinada como, por exemplo, Bento XVI. Se caracterizava pela sua humildade e simplicidade e pelo eterno sorriso que estampava em seu rosto. Convocou o Concílio não para afirmar autoridade, mas movido por espírito democrático, debater e decidir sobre a renovação da igreja e a sua adaptação ao tempo presente. Isso feriu profundamente aos pregadores de verdades absolutas, eternas e imutáveis, aos conservadores, aos que acreditam na imutabilidade do tempo e da história.
Uma bela biografia do papa João XXIII de autoria de Thomas Cahill. Pela Objetiva. Nela Yves Congar retrata a personalidade do papa com uma frase muito simples: "Este foi o segredo de sua personalidade: amava mais as pessoas do que o poder".

João XXIII não levou teses prontas, como normalmente acontece em Congressos, para serem aprovadas. Creio que podemos comparar o Concílio com a realização de Congressos. Confiou profundamente numa iluminação mais coletiva do que individual, para a solução de problemas.

As principais decisões tomadas neste concílio estão relacionadas aos seguintes campos: Na pastoral. Remontam ao Concílio as diversas pastorais hoje em voga e que, em última análise, representam uma maior democratização da igreja, com a valorização de leigos, de pessoas antes, absolutamente fora da hierarquia religiosa (hieros - sagrado + archei - governo, ordem - hierarquia é, portanto, um governo ou uma ordem sagrada). Remontam também ao Concílio as mudanças na liturgia, com a maior aproximação do povo. A liturgia se tornou menos mistério e mais participação: língua vernácula e cerimonial voltado para o povo e este, a participar ativamente (Mas não os animadores de auditório dos dias de hoje). Merece também um profundo destaque a preocupação da igreja com as questões sociais, o que moveu a aproximação da igreja com as doutrinas marxistas e o nascimento da teologia da libertação e a bela encíclica de Paulo VI, a Populorum Progressio.

Creio, no entanto, que o maior avanço ocorreu com relação a atitude da Igreja. Ela já não mais se apresentava como o único caminho do bem e da salvação, abrindo assim espaços para as demais confissões cristãs, e também, aproximando-se dos outros credos religiosos. Isso mexe com a estrutura de poder. Isso é confissão de humildade nunca vista, sonhada ou imaginada. Também não tenho dúvidas de que a reação  interna, conservadora se centra neste quesito. É partilha de poder. E nenhuma personalidade autoritária, dogmática e portadora de verdades absolutas e imutáveis gosta da partilha de poder. É a abertura de uma fenda na infalibilidade.

Estes são os arquétipos que marcaram a minha formação e, dela guardo com muito carinho e cuidado a formação humanista - de solidariedade e não de caridade - que começou a se moldar em mim.

Os papas progressistas foram os dois do Concílio Vaticano II, João XXIII e Paulo VI e ainda o meteórico e enigmático papado de João Paulo I. Depois os conservadores tomaram o poder com o longo papado de João Paulo II e o atual, que agora renuncia, Bento XVI.  Ao que consta, estas disputas internas entre estes grupos é que teriam provocado grandes aborrecimentos ao papa. Veremos mais adiante.

Em tempo. Como estou lendo Darcy Ribeiro, vejam o que ele fala de três Joões de seu tempo, depois de ter sido convidado por JK para ser ministro da agricultura, no seu futuro governo.  Darcy fala o que segue: "Isso na boca de Juscelino, dito hoje, parece inverossímil. Mas naquele mundo dos três Joões que procuravam reformar-se a si mesmos e ao mundo, ganhando novos espaços para o progresso, tornou-se factível e foi o que Juscelino me disse. Efetivamente, vivia-se um tempo de exceção, cujas três figuras simbólicas eram os três Joões: João XXIII, de Roma, conduzia a Igreja a uma política lúcida, rompendo a aliança milenar com os ricos. John Kennedy, nos Estados Unidos, pelo menos aparentemente, comprometia-se com a democracia e com um novo trato com a América Latina, que permitisse um desenvolvimento socialmente responsável. E o próprio Jango, que também era João. A Guerra Fria matou meus três Joões e seus ideais de liberdade e solidariedade".

3 comentários:

  1. Muito bem escrito. Também considero o Papa João XXIII um verdadeiro mensageiro de Deus para esta nossa Igreja tão santa e pecadora...

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  2. Gostei muito de seu escrito. Aprendi coisas que não sabia sobre nosso querido papa joão XXIII. Sou uma grande admiradora dele e agradeço a Deus por tudo o que ele fez para nossa Igreja através do Concilio. Parabéns por tudo o que você escreveu sobre ele.
    Maria Rita

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  3. Maria Rita, agradeço o seu comentário. João XXIII, se é que existem santos, ele realmente foi um. Ele não precisa das formalizações da Igreja, não. Ele também nunca apareceu ao lado de horripilantes ditadores! Um abraço.

    Tão santa e tão pecadora! isto tudo é tão humano!

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