sábado, 3 de novembro de 2012

Papisa Joana. - Donna Wolfolk Cross.

"Onde quer que vejais uma lenda, podeis ter certeza, se a investigardes a fundo, que encontrareis uma história". Vallet de Viriville.

"Dada a obscuridade e confusão da época, é impossível determinar com absoluta certeza se Joana existiu ou não. O que realmente aconteceu em 855 talvez nunca seja totalmente conhecido. Foi por isso que optei por escrever um romance e não um estudo histórico. Embora baseado nos fatos sobre a vida de Joana como foram relatados, o livro é uma obra de ficção. Pouco se sabe sobre o início da vida de Joana, exceto que ela nasceu em Inglheim de um pai inglês e que foi monge no monastério de Fulda. Tive necessariamente, que preencher algumas lacunas na sua história.
Entretanto, os principais acontecimentos da vida adulta de Joana, conforme descritos em Papisa Joana, são todos exatos".

"O século IX marcou, em suma, a transição da sociedade de uma forma de civilização, morta havia muito, para outra que ainda não tinha nascido, com toda a efervecência e agitação que isso implicava".

Tertuliano, um padre apostólico contra o sexo feminino: "E vocês não sabem que são Eva? [...] Vocês são o portão do diabo, o traidor da árvore, a primeira desertora da Lei Divina; vocês são aquela que instigou aquele a quem o diabo não ousou abordar [...] por causa da morte que vocês merecem, até o Filho de Deus teve de morrer".

Ganhei de presente de aniversário, do meu filho Andrei e da minha nora Ana Paula, o livro Papisa Joana, de Donna Woolfolk Cross, da geração Editorial. 2012. Gosto de romances históricos, embora os olhe com certa desconfiança, especialmente os de sucesso fácil, tipo Dan Brown. A autora é bem referenciada. É da área de literatura.
Li o livro e me deparei no seu final com a nota da autora sobre a questão: A papisa Joana existiu? Dessa nota retirei o transcrito acima, que acho fundamental para situar o leitor.

Quanto ao romance, posso afirmar que está bem escrito e a trama flui. É gostoso de ler. Talvez contenha algumas obviedades. Não vou aqui recontar a história de Joana, que só vira papisa na condição de João Ânglico, portanto, na condição masculina. Ao tecer algumas considerações, busco alguns personagens.
Eu encontrei quatro pontos que me chamaram mais a atenção.

Primeiro: a condição feminina. É um livro imprescindível para quem estuda questões de gênero. Não dá para imaginar como a mulher era tratada nesse período histórico e a fundamentação que se usava para dar esse tratamento. A frase acima de Tertuliano é uma pequena mostra dessa fundamentação. Sublinhei no meu exemplar todas as passagens em que os personagens masculinos se fundamentam para agirem dessa maneira. São Paulo é o campeoníssimo nessas citações. A mulher não tinha a menor chance de estudar e de se afirmar. A maldição vem desde o Gênesis, no seu famoso capítulo 3: Disse também à mulher: "Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dor teus filhos; teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob seu domínio". Por esse domínio entendia-se simplesmente tudo. Por isso mesmo todos os avanços nos estudos e na afirmação de sua liderança, Joana os obtem sob o disfarce de João.

Segundo: a curiosidade. Joana era uma menina extremamente curiosa. Bastou ela receber uma pequena ajuda de um professor (o grego Asclépio) para ela querer saber sempre mais. Também na cabeça de Joana havia espaço para duas culturas: a de seu pai e a de sua mãe. O pai, um cônego católico e a sua mãe, uma bárbara saxã. A comparação entre elas seria inevitável. Em sua mente havia espaço para a dúvida. Não estava totalmente ocupada pela certeza dos dogmas. Asclépio proporcionou a Joana a possibilidade de dar asas para a sua curiosidade e investigar o mundo. Ensinou-a a ler, deu-lhe um livro e recomendou-a ao bispo, por sua genialidade. Foi ao mosteiro e se destacou nos estudos de medicina que lhe possibilitaram toda a ascensão, junto, evidentemente, com a condição masculina já adquirida. É notável como a autora trabalha bem as seis condições para a ilustração de qualquer verdade. Qualquer advogado deveria ter essa aula de Cícero. As seis questões evidenciais: Quis - Quem; Quomodo - Como; Ubi - onde; Quando - quando; Quid - O que e Cur - por que?
Isso mostrou para Joana os choques entre a fé e a razão, somadas às questões da tradição. Veja essa passagem do livro, estando ela já no pontificado: "ela era estrangeira, eles eram romanos de nascimento; ela acreditava no poder da razão e da observação, eles acreditavam no poder das relíquias sacras e milagres; ela era avançada e progressista, eles eram conservadores, presos a costumes e tradições"  (443). A curiosidade simplesmente faz deslanchar. Uma pergunta: O que detém a curiosidade?

Terceiro: A ignorância do cônego de aldeia. O pai de Joana era um cônego inglês, que acompanhou o exército de Carlos Magno na conquista dos povos saxões. A sua função era a de se integrar a uma comunidade e nela manter viva a fé cristã. Não precisava ser letrado, bastava ter fé, fé inabalável. Essa era a única qualidade dele exigida. Não poderia titubear diante das reminiscências da cultura bárbara, recém dominada. Todo o mal era um castigo divino. Existe uma cena muito forte em que um irmão de Joana morre. Joana ganhou toda a culpa porque fora flagrada lendo. Deus se vingara deles todos, com a morte de uma criança. Para expiar a culpa jejuns até quase a morte. Tenho uma recordação de seminário que me arrepia até hoje. Um padre nos falava de S. João Maria Batista Vianney, o cura D'Ars (padroeiro dos padres seculares). Apregova ele, que o santo nunca se destacou na vida pelos estudos e que fora ordenado padre apenas em função de sua enorme fé. Por que será que isso nos era dito?

Quarto: Uma descrição de época. Já temos uma frase da autora, acima citada. Mas recorro novamente a ela para a ver melhor. Época em que a civilização romana já se dissipara e em que ainda não fora substituída por nova forma civilizada de organizaçao social e política:

"Algumas coisas descritas em Papisa Joana podem parecer chocantes do nosso ponto de vista, mas não o eram para as pessoas daqueles tempos. O colapso do Império Romano e a consequente derrocada da lei e da  ordem levaram a uma era de barbarismo e violência sem precedentes. Como um cronista contemporâneo lamentou, foi 'uma era de espada, uma era de vento, uma era de lobo'. A população da Europa foi quase reduzida à metade por uma desastrosa série de fomes, pragas, guerras civis e invasões bárbaras. A expectativa média de vida era muito curta: menos de um quarto da população chegava aos cinquenta anos. Não havia mais cidades de verdade; os povoados maiores tinham não mais do que dois ou três mil habitantes. As estradas romanas haviam ficado arruinadas, e as pontes de que dependiam desapareceram".
Para quem tiver interesse específico, também creio serem interessantes as abordagens em torno da medicina natural.
A versão deste livro foi passada para o cinema, pelos mesmos produtores de "O Nome da Rosa". Foi lançado em 2009. Procurei localizá-lo, mas o Google só me remete para a outra Joana, a joana D'Arc. O filme é alemão. É facil localizar o trayler dele.

Valeu Andrei e Ana Paula, foi um belo presente e, para quem tiver curiosidade.... Deixo ainda uma curiosidade. A foto abixo é de uma cadeira que efetivamente existe no Vaticano e que, dizem os boateiros, servia para testar o sexo do papa. Um teste de gênero.

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